Genacéia da Silva Alberton*
Quando tratamos da evolução do direito processual, não é possível afastar a importância que teve o direito processual canônico na sua humanização e a repercussão que ainda hoje temos do direito canônico na esfera civil.
A morte do último apóstolo e daqueles que com ele conviveram fizeram com que os cristãos das comunidades primitivas se vissem na contingência de se organizarem. A Igreja foi se estabelecendo em termos de instituição com regras que perpassavam pelo Estado tendo em vista a forte influência política do clero. Por isso, houve o desenvolvimento da função judiciária por parte dos bispos. A influência prevalente era do sistema do direito romano, especialmente o processo extra ordinem do baixo império.
Relevante também é o fato de que o cristianismo foi "germanizado" e os germânicos cristianizados. O cristianismo deu apoio às instituições das Ordálias ao reforçar o conceito de divino. O Iudicium Dei era baseado na crença nos poderes sobrenaturais, sendo mudado pela Igreja para uma sistemática racional de descobrir a verdade por meio de questionamento de testemunhas.1
Os decretais, cartas enviadas pelo Papa em resposta a questões propostas e as oriundas dos Concílios, assim como os cânones eram fontes de direito com força de lei. Os Concílios dos V e VI séculos proibiam que clérigos fossem julgados por um tribunal laico, sendo o bispo o juiz natural. Se o processo fosse entre clérigo e leigo, o tribunal seria misto composto de clérigo e "iudex publicus"
Ocorre que, mesmo promulgadas leis e estabelecidos procedimentos, esses procedimentos anteriores ao final do século XI e início do XII não eram diferenciados dos costumes sociais e das instituições políticas e religiosas. Paulatinamente, a jurisdição disciplinar se estendeu a leigos, como nas questões matrimoniais.
Inobstante o conflito fosse entre leigos, poderia haver a atuação do bispo se as partes estivessem de acordo. E isso ocorria com frequência por ser a jurisdição eclesiástica tida como superior à laica, menos arbitrária, gratuita e menos formal. 2
A partir do XII século, com base no decreto de Graziano, o processo romano-canônico passou a ser amplamente utilizado e se insere no movimento de conjuntos de leis que vieram a fazer parte de uma ciência do Direito. Esse impulso veio a partir da afirmação de supremacia papal sobre toda a Igreja ocidental e da independência da Igreja do poder secular. Uma hierarquia dos cortes eclesiásticas foi estabelecida, culminando na Cúria Romana, na pessoa do Papa. E isso só foi possível por existir uma comunidade, o populus christianus.
O Direito dos povos germânicos era local, tinha ordenações, juramentos que também foram absorvidos pelo direito canônico Porém, a formalidade excessiva tornava os procedimentos complexos e dispendiosos do ponto de vista administrativo. A partir do provimento legislativo do Pontífice Clemente V, a decretal Saepe (1314) dá origem a um novo tipo de processo, o sumário. 3
Os canonistas começam a utilizar a expressão processus, empregando-a nas locuções processus iudicii e processus iudicialis. 4
No final do século XI o papado obteve a libertação de Bizâncio dos infiéis, tendo sucesso na organização da Primeira Cruzada (1096-1099). A essa se sucederam outras que caracterizaram a Revolução Papal, fazendo aumentar o poder e autoridade do papa.
Além das cruzadas, a violência da Revolução Papal tomou a forma de guerra e rebeliões. O papado, o império ou reinado usavam tanto mercenários como exércitos feudais. Houve manifestações populares contra autoridades locais, inclusive bispos.5
A Revolução Papal fez surgir o Estado moderno ocidental. A Igreja aplicava suas leis e exercia os poderes legislativo, administrativo e judiciário de um Estado moderno. Aderiu a um sistema racional de Jurisprudência, o Direito Canônico. O batismo conferia cidadania que poderia ser afastada apenas pela excomunhão.
O Estado secular não detinha o poder eclesiástico, mas tinha intervenção na indicação de bispos, abades e outros clérigos e membros do clero continuavam a ser conselheiros de líderes seculares.
Os cânones, os decretos conciliares, decisões no âmbito da Igreja ensejaram a formação do direito canônico, elementos que repercutiram nas normas estatais. O objetivo era regular as relações políticas concorrentes eclesiástica e secular, capacitar as autoridades de programar a missão de impor a paz e a justiça dentro de seus respectivos territórios ao mesmo tempo em que permitia a Igreja cumprir a sua missão pelo mundo.
Do ponto de vista histórico, após Graziano, com a presença ativa da Igreja há uma construção jurídica do direito canônico paralelo à construção jurídica do Estado. Os decretais, as decisões das autoridades eclesiásticas, juntamente com a legislação extravagante, serviram de suporte ao Corpus Iuris Canonici, designação dada por Gregório XIII a essa codificação. Embora tenha havido várias tentativas, somente Bento XIV conseguiu publicar oficialmente as constituições de seu pontificado e no pontificado de Pio X veio a ser promulgado o Código de Direito Canônico (Codice Iudice Cononici) de 1917 que vigeu até 1983, após o Concílio Vaticano II, com a promulgação do atual CIC.
A falta de conhecimento do Código de Direito Canônico gera perplexidade aos estudiosos do Direito Processual Civil, pois não compreendem que há um instrumento normativo próprio no âmbito das relações na Igreja Católica. Por outro lado, a pouca preocupação dos crentes com esse instrumento normativo fazem que neguem vigência a procedimentos que podem gerar nulidade ou exigem a restauração como ocorre com inobservâncias canônicas no âmbito do direito matrimonial.
Com o Acordo Brasil- Santa Sé temos mais um instrumento legislativo, de feição internacional, O acordo foi assinado em 13 de novembro de 2008 entre o Presidente do Brasil e sua Santidade o Papa Bento XVI. Observando a tramitação no Congresso Nacional, o acordo foi discutido na Câmara que o ratificou no dia 25 de agosto, sendo aprovado no Senado em 7 de outubro. O acordo, promulgado em 12 de fevereiro de 2010, tem força normativa nos termos da Constituição Federal.
O art. 12 do Acordo estabelece que o casamento celebrado em conformidade com as leis canônicas que atender às exigências estabelecidas pelo direito brasileiro produz efeitos civis desde que registrado no registro próprio, produzindo efeitos a partir da celebração.
Essa disposição não é novidade, pois a consequência civil do matrimônio canônico está previsto no nos arts. 1515 e 1516 do Código Civil Brasileiro.
A novidade está no § 1º do mesmo artigo que estabelece que a homologação das sentenças eclesiásticas em matéria matrimonial, confirmadas pelo órgão de controle superior da Santa Sé, será efetuada nos termos da legislação brasileira sobre homologação de sentenças estrangeiras.
Portanto, não se trata de discutir a questão da laicidade do Estado, mas de reconhecer o efeito da decisão de um Tribunal que não é do Estado, mas da Igreja no âmbito civil do cidadão.
O tema dá espaço a reflexões técnicas e aumenta a responsabilidade dos agentes que atuam na esfera na jurisdição eclesiástica, especialmente nas causas de nulidade matrimonial. Portanto, identificar e flexibilizar nulidades formais no plano do processo canônico para atender seu caráter pastoral poderá trazer consequências quando o interesse das partes for ver reconhecida essa declaração para efeitos civis nos termos do Acordo Brasil-Santa Sé.
Cabe-nos, portanto, nos debruçarmos sobre o tema, reconhecermos a importância das disposições canônicas e a amplitude que foi dado à atuação dos Tribunais Eclesiástico. Eis, inegavelmente, mais uma contribuição da área canônica para os estudos do Direito Processual Civil.
* Doutora em Direito, Especialista em Direito Matrimonial Canônico , Mestranda em Teologia (PUCRS), Defensora do Vínculo de Primeira Instância - Tribunal Eclesiástico Interdiocesano de Porto Alegre
1 BERMAN, Harold J. Direito e evolução. A formação da tradição jurídica ocidental. São Leopoldo: UNISINOS, 2006, p.127-142.
2 CINTRA, Geraldo de Ulhoa. História da organização judiciária e do processo civil. São Paulo: Jurídica e Universitária, 1970, vol. I, p.176.
3 MONETA, Paolo. La giustizia nella chiesa. Bolonha: Il Mulino , 1993, p.12.
4 PICARDI, Nicola. Jurisdição e Processo. Organizador e revisor técnico Carlos Alberto de Oliveira, Rio de Janeiro : Forense , 2008, p.35-36.
5 BERMAN. Op. cit. p. 133