A respeito do pecado original, apresentam-se entre teólogos católicos duas posições contrapostas.
A posição tradicional sustenta que, desde a concepção, o homem herda o pecado cometido nas origens por Adão e Eva - pecado original -, como culpa própria, embora sem o ter cometido; daí a perda da vida sobrenatural - graça - que Adão e Eva tinham recebido magnanimamente de Deus. Ao pecado original contraído acompanha como uma das suas consequências a concupiscência, isto é a inclinação da vontade para o mal.
Por outro lado, uma posição moderna que se vai difundindo sustenta que o homem concebido não pode arcar com a culpa dos seus progenitores, embora sim as consequências dessa culpa. Assim, se o progenitor delapida a sua fortuna por crime ou negligência, o descendente perde essa fortuna em expectativa. De modo semelhante, o homem concebido herda a perda da graça, a inclinação para o mal e o debilitamento da inteligência e da vontade, mas não a culpa do pecado de Adão e Eva (nem a de outros seus antepassados). Alguns autores chegam a sustentar que o pecado original no homem concebido seria apenas a privação da graça que Deus tinha concedido aos nossos primeiros pais.
Vamos procurar dialogar com a razão, sem invocarmos de momento os argumentos de autoridade do Magistério da Igreja, para evitarmos entrar na interpretação desse Magistério.
Realmente, não se entende facilmente por que o homem há de ser solidário com a culpa dos seus progenitores. Nos tempos antigos, em que a civilização e a cultura se fundamentavam na solidariedade, cada pessoa era solidária no bem e no mal com todas as pessoas da sua comunidade; nos tempos de hoje, com o personalismo e mais ainda com o individualismo, isso é impensável.
No entanto, mesmo no tempo actual, quando morre uma pessoa, continua-se a aceitar que a herança - pelo menos em parte - passe para os herdeiros naturais, mesmo que o defunto não o tenha querido! Também quando o rei concede graciosamente um título nobiliárquico a quem se notabiliza, o herdeiro fica a contar com o direito a recebê-lo. Será uma simples convenção social, ou baseia-se num vínculo natural? Há solidariedade somente para receber o bem, e não o mal?
Se se afirma que o homem concebido está simplesmente privado da graça, pareceria que o homem nasce com a natureza humana saída das mãos de Deus, portanto naturalmente boa. Seria como se Deus tivesse criado Adão e Eva nesse estado de natureza pura, sem lhe conceder a graça. Sendo assim, o homem ao nascer manteria a inteligência e a vontade sem estarem debilitadas - para além das variações que se dão na natureza, também na natureza animal -, e também não teria inclinação para o mal. Portanto, o homem teria capacidade para fazer o bem e evitar o mal proporcionados às suas forças naturais: a graça, a receber pela fé e pelos sacramentos, seria apenas uma ajuda para garantir a vitória. Concorda isto com a nossa experiência?
A maior parte dos teólogos da posição moderna admitem que o pecado original, além da privação da graça, é acompanhado da concupiscência e do debilitamento da inteligência e da vontade. Quer a primeira quer o segundo são evidentemente imperfeições da natureza humana; mas não estão ao mesmo nível das imperfeições que se dão nos animais e em outros seres criados. No homem, aquelas imperfeições afectam o destino da pessoa, na vida futura. Isto é mais claro no caso da concupiscência, que inclina a vontade para o mal, para a infelicidade eterna: à partida, desde o nascimento, o homem está inclinado para a infelicidade! Deste modo, vê-se que a concupiscência (e o debilitamento da inteligência e da vontade) aparecem como castigo ao homem. Mas o castigo, particularmente o castigo divino, supõe uma culpa. Onde está a culpa?
Além disso, se o homem nasce sem nenhuma culpa, por que é necessário ser baptizado quanto antes? Se morrer antes de chegar ao uso da razão e ao discernimento do bem e do mal, não iria certamente para o Céu? Outra hipótese não seria um castigo divino sem sentido?
Negando a existência de uma misteriosa solidariedade entre todos os seres humanos, como explicar que Cristo tenha assumido a nossa comum natureza humana, histórica, para a redimir? E ainda, como explicar que o homem possa ser redimido pelos méritos, não seus, mas de Cristo, mesmo que se reduza a redenção simplesmente à recepção da graça, e não à cura da natureza humana em pecado?
Deixam-se estas sugestões para ajudar na reflexão de um tema de antropologia, que tem grande implicação prática na vida cristã - na educação, na espiritualidade, na ascética -.

Viseu, 6-I-09
Pe. Miguel Falcão
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(in Agência Ecclesia, "Opinião", 8-I-09)

 

 


 

 PECADO ORIGINAL: COM OU SEM CULPA PRÓPRIA? (2)

Os comentários ao texto publicado na Agência Ecclesia/Opinião, em 8-I-09, confirmam a existência da dupla posição a respeito do pecado original: com ou sem culpa própria. Alguns não tinham consciência da posição oposta, outros não davam muita importância à divergência.
Uns reconhecem que, na mentalidade actual, não se pode aceitar a culpa e a respectiva responsabilidade pelo pecado de um antepassado: uma solidariedade misteriosa não chegaria para o explicar. Outros acham que, não havendo essa solidariedade, também não se explica que todos os homens nasçam com a concupiscência, isto é, a inclinação ao pecado, que é sempre consequência de um pecado. Nesta perspectiva, estes compreendem que os naturalistas afirmem que no homem não há inclinação para o mal, e que todas as inclinações são naturais.
Uns pensam que a criança antes do baptismo não vai necessariamente para o Céu porque não tem a graça de Deus. Vem à memória a antiga doutrina do Limbo, entendido como uma situação de felicidade natural. Mas não é a felicidade sobrenatural, a vida eterna, que Deus quer para todos os homens? Não foi assim que criou Adão e Eva? Impedir essa felicidade a uma criança sem nenhuma culpa da sua parte, não seria um castigo divino sem sentido?
Uns propõem que se distinga a culpa devida ao pecado original (contraído) da culpa devida ao pecado pessoal (cometido). Talvez assim tudo se harmonizasse, dizem. Algum acha que se pode falar de participação na culpa de Adão e Eva. Aliás, todos estão de acordo que o baptismo perdoa o pecado original e os pecados pessoais: se se fala de perdão, é porque existe uma culpa.
Continuamos a manter-nos no debate com argumentos da razão, para evitar que o apaixonamento ofusque o raciocínio. O leitor poderá comentar algum dos argumentos ventilados ou sugerir outros.
Alguns comentários já fazem referência à Tradição e à Sagrada Escritura. Os primeiros recordam que a Tradição da Igreja sempre entendeu o pecado original como a transmissão de uma culpa contraída nas origens, mesmo que seja um mistério; os segundos propõem uma releitura da Sagrada Escritura, diferente da feita pela Tradição, sugerindo que os autores sagrados quer do AT quer do NT não pretendiam ensinar dogmaticamente a existência de uma culpa, mas somente apresentar uma explicação no contexto da cultura do tempo.
Há quem proponha que o dogma do pecado original deva ser reformulado de acordo com a mentalidade actual; outros, pelo contrário, propõem que o dogma tal como foi definido seja exposto tendo em conta a mentalidade actual, de modo a ser mais inteligível.
Em resumo, parece importante esclarecer se existe ou não uma misteriosa mas real solidariedade entre todos os homens e em que medida cada um é responsável pelo bem ou pelo mal de outrem. O problema do pecado original não afecta só a Redenção, mas também a justiça social. De algum modo, responsabilidade pelo pecado e responsabilidade social parecem andar a par.
Viseu, 18-II-09
Pe. Miguel Falcão
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(in Agência Ecclesia, "Opinião", 18-II-09)

 


 PECADO ORIGINAL (3)


Os comentários que tenho ouvido na sequência do texto publicado na Agência Ecclesia/Opinião em 8-I-09, e que em boa parte foram referidos na nota publicada no mesmo local em 18-II-09, mostram as incertezas actualmente existentes a propósito da doutrina sobre o pecado original.
Fazendo caso a quem dizia que já era hora de recordar essa doutrina, pareceu-me que seria oportuno ver como o Papa Bento XVI fala dela à mentalidade actual - o que fez na sua catequese dedicada a São Paulo, na audiência geral da quarta-feira, no dia 3 de Dezembro do ano passado.
Na Carta aos Romanos 5, 12-21, S. Paulo confronta Adão com Cristo, para afirmar que, se o pecado de Adão prejudicou a humanidade, o dom da graça de Cristo restaurou-a superabundantemente. "Onde, porém, abundou o pecado, superabundou a graça" (Rom 5, 20). Por isso, Bento XVI recorda que na consciência da Igreja o dogma do pecado original está inseparavelmente relacionado com o dogma da salvação em Cristo.
(Poder-se-á dizer também que S. Paulo, ao ver que o próprio Deus se fez homem e sofreu a morte na cruz para salvar o homem, compreendeu o abismo a que conduzira o pecado de Adão?)
O Papa sabe que, hoje, muitos pensam que não faz sentido a doutrina de um primeiro pecado que depois se teria difundido em toda a humanidade; e, por conseguinte, também não seria necessária a Redenção e o Redentor. "Portanto, existe ou não o pecado original?"
O que não se pode negar, "o dado empírico, é que existe uma contradição no nosso ser. Por um lado, todo o homem sabe que deve fazer o bem e intimamente até o quer fazer. Mas, ao mesmo tempo, sente também outro impulso para fazer o contrário, para seguir o caminho do egoísmo, da violência, para fazer só o que lhe apraz, mesmo sabendo que assim age contra o bem, contra Deus e contra o próximo. São Paulo, na sua Carta aos Romanos, exprimiu esta contradição no nosso ser assim: "Quero o bem, que está ao meu alcance, mas realizá-lo não está. Efectivamente, o bem que quero, não o faço, mas o mal que não quero é que faço" (7, 18-19). Esta contradição interior do nosso ser não é uma teoria. Cada um de nós comprova-o todos os dias. E sobretudo vemos sempre ao nosso redor a prevalência desta segunda vontade. Basta pensar nas notícias diárias sobre injustiças, violência, mentira, luxúria. Vemo-lo todos os dias: é um facto".
Este impulso ou inclinação para o mal é tão real e contrasta com a inclinação natural para o bem, que Pascal chegou a falar de uma "segunda natureza". "Esta contradição do ser humano, da nossa história, deve provocar, e provoca também hoje, o desejo de redenção. E, na realidade, o desejo de que o mundo seja mudado e a promessa de que será criado um mundo de justiça, de paz, de bem, está presente em toda a parte: na política, por exemplo, todos falam desta necessidade de mudar o mundo, de criar um mundo mais justo. E precisamente isto é expressão do desejo de que haja uma libertação da contradição que experimentamos em nós próprios".
Por conseguinte, o facto do poder do mal no coração humano e na história humana é inegável. A questão é: como se explica este mal? Na antiguidade, falava-se de que o homem provinha de dois princípios originários opostos: um princípio bom e um princípio mau. Na visão ateia, supõe-se que o próprio ser tem em si desde o início o bem e o mal.
"A fé (cristã) diz-nos que não há dois princípios, um bom e um mau, mas há um só princípio, o Deus criador, e este princípio é bom, só bom, sem sombra de mal. E por isso também o ser não é uma mistura de bem e mal; o ser como tal é bom e por isso é bom ser, é bom viver. É esta a boa nova da fé: há apenas uma fonte boa, o Criador. (...) O mal não provém da fonte do próprio ser, não é igualmente originário. O mal vem de uma liberdade criada, de uma liberdade abusada".
"Como foi possível, como aconteceu? Isto permanece obscuro", diz Bento XVI. E não se demora a analisar como é que o primeiro homem, criado bom, cometeu o mal; nem como o seu pecado passou para toda a humanidade. Limita-se a recordar o dado da fé: o homem pecador foi curado quando Deus entrou pessoalmente na história, com a crucifixão e ressurreição de Cristo. Testemunhas disto são os santos.
Se desejávamos mais explicações, podemos pelo menos recolher o que Bento XVI recorda da doutrina da Igreja: que todo o homem nasce com uma inclinação interior para o mal que é muito forte, devida ao pecado de Adão, que não pode ser superada pelas suas próprias forças, mas somente pela graça de Cristo.


Viseu, 28-VI-09
Pe. Miguel Falcão
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(in Agência Ecclesia, "Jornal de Opinião", 3-VII-09)