- Comissão Pastoral Episcopal para a Vida e Família -

Assembléia Geral da CNBB - Itaici

2 – 11.IV.2008

Vida humana: considerações científicas e éticas

Não é só a guerra que mata a paz. Todo crime contra a vida é um atentado contra a paz, especialmente se ele viola os costumes do povo tal como está acontecendo na atualidade, com a supressão da vida que começa, com o aborto. (...) Vida individual e paz geral estão sempre unidas por um inquebrantável parentesco. Se queremos que a ordem social crescente se apóie sobre princípios tangíveis, não a ofendamos no coração do seu essencial sistema: o respeito à vida humana.Também nesse sentido a paz a vida são solidárias na base da ordem e da civilização”.

Mensagem do Papa Paulo VI para a Jornada da Paz, 1.I.1977. (citado na Encíclica Evangelho da Vida, João Paulo II, 25.III.1995, n. 101)

Este vínculo invisível e permanente, entre a paz e a vida em qualquer época da humanidade, concretamente nesse início do terceiro milênio, tem como defensores incansáveis a Igreja Católica e aqueles segmentos da sociedade constituídos por evangélicos, judeus, muçulmanos, budistas, as demais denominações religiosas e todos os homens de boa vontade, que também partem da convicção interior do caráter universal da sacralidade da vida.

O que está presente nesse valor sagrado da vida humana desde a sua concepção até o último instante da sua sobrevivência natural no tempo?

Está presente antes de tudo a exclusão de qualquer poder arbitrário supressivo: a pessoa humana, fundamentada na ordem natural e sobrenatural de que a sua vida é plena, é intocável, é digna de todo respeito, deve receber todos os cuidados e ser objeto de qualquer sacrifício para preservá-la e para favorecer a sua história.

Assim sendo não há nenhuma autoridade humana com poder de suprimir a vida de uma pessoa inocente, nem de retirar dessa pessoa seu direito próprio e intransponível: o direito à inviolabilidade da vida humana desde a sua concepção até o seu final natural.

Do ponto de vista biológico, esses dois momentos únicos – concepção e morte – têm um único denominador comum: a pessoa humana.

Quem é concebido pelo conhecido fenômeno biológico da fecundação, é o ser humano e não só uma célula viva. Quem morre por processo natural ou por ações diretas contra a vida é o mesmo ser humano, e não as suas células, sejam poucas ou sejam muitas.

A verdade científica conhecida é que na concepção forma-se uma célula peculiar, dotada de uma nova estrutura de informação genética, distinta das células que lhe deram origem. Essa célula ou zigoto humano tem uma identidade individual concebida pela sua inédita mensagem genética que irá emitindo, ao longo do tempo, ordens biológicas para que se construa e se desenvolva o organismo desse novo ser humano.

No momento da fecundação constitui-se o estado unicelular de um organismo pluricelular, uma totalidade corpórea que tende naturalmente ao desenvolvimento completo. Insistindo ainda com a linguagem científica deve-se dizer que a célula com o fenótipo zigoto é um ser humano vivo, e não só uma célula viva.

Esta verdade científica reveladora permite defender a seguinte afirmação: o zigoto é a única realidade unicelular intrinsecamente totipotente, capaz de desenvolver-se até ser um organismo completo. Há, portanto, um processo constitucional do novo indivíduo que ultrapassa a mera ativação do óvulo pela entrada do espermatozóide.

Esse processo vital é organizativo, com um início bem definido – fecundação – e com um desenvolvimento bem estabelecido – crescimento, o amadurecimento e o envelhecimento – que se dá de um modo seqüencial, até que se atinja o seu final, a morte natural.

Nesse processo vital há uma cooperação dinâmica de gens e do meio que fornece as condições para a expressão regulada de cada gen durante a constituição e desenvolvimento desse novo ser.

Ao longo da sua vida o novo indivíduo, graças ao seu genoma ou patrimônio genético, mantem a sua identidade, e ao mesmo tempo durante o seu desenvolvimento vai recebendo novas informações procedentes do meio intra e extra-uterino.

Qualquer intervenção sobre o ser humano nesses seus momentos iniciais, mesmo que tenha uma intenção terapêutica, devido à inconsistência física do seu organismo e por causa do estabelecimento necessário dos seus eixos corporais, será, sem sombra de dúvida, uma ameaça a todo esse processo vital, conhecido como gestação, mesmo que ainda não tenha ocorrido o fenômeno da nidação ou implantação no endométrio.

Consultando qualquer dicionário na voz aborto o que se indica como sinônimo é: o não desenvolvimento de um processo, o seu malogro, a sua frustração, termos equivalentes ao impedimento do bom êxito daquilo que se iniciou num momento determinado.

O que a Medicina se define como aborto parece ser aplicável apenas à pós-implantação do embrião: “expulsar prematuramente do útero o produto da concepção, ou seja, o embrião ou feto inviável ou não”. No Direito a palavra aborto tem uma característica jurídica singular: “interrupção dolosa da gravidez, com expulsão do feto ou não”.

O que se iniciou no momento da concepção foi uma vida humana e um processo constitucional, que como já foi dito não termina com a formação de uma ou mais células. O término conhecido – e esperado – desse processo é a morte, seja ela natural, seja ela diretamente provocada.

A pressão moral que nosso povo tem sofrido ultimamente incide sobre as pesquisas com células tronco embrionárias e o seu esperado uso terapêutico – a assim chamada medicina regenerativa – que criam expectativas de vida para muitos enfermos de doença até o momento consideradas incuráveis.

Pode-se considerar tais pesquisas como aborto?

É lícito o emprego dessas células embrionárias – seria melhor dizer dizer, emprego do ser humano na idade gestacional de embrião – para um trabalho de pesquisa pura ou para experiências terapêuticas no campo das doenças degenerativas, metabólicas, genéticas e para pessoas com lesões nervosas irreversíveis?

Novamente é a ciência especializada nesse processo constitucional e organizacional do corpo humano quem apresenta respostas a essas questões de caráter ético.

São bem conhecidas as primeiras etapas e dias do desenvolvimento embrionário: o tamanho que se tem nesses momentos posteriores à fecundação é de cerca de 0,1 a 0,15 milímetro, e ainda que haja sucessivas divisões das células que compõem o embrião não ocorre um crescimento físico.

Só quando termina a sua primeira semana de vida é que o embrião, libertando-se da zona pelúcida que o envolvia até então, aumentando o número das suas células cresce e prepara-se assim a implantação (nidação) na parede uterina, processo que se completa no final da seguinte semana de desenvolvimento.

Nesse tempo de vida o que caracteriza o desenvolvimento embrionário de todos os mamíferos é a sua marcante assimetria, isto é, as células não se dividem ao mesmo tempo e não têm a mesma orientação espacial.

Essas divisões assimétricas têm como finalidade a formação de dois tipos celulares diferentes do ponto de vista geométrico e bioquímico. As células que irão constituir o embrião propriamente dito e que compõem a chamada massa celular interna, e outras células irão formar o trofoblasto e fornecerão o tecido extra-embrionário.

Na passagem da etapa de 8 células para a de 16 produz-se a compactação do embrião, que define a existência das células internas e das células externas, já com propriedades bem diferenciadas e com seu destino bem determinado.

Assim as células que compõem o embrião nos seus primeiros dias são diferentes entre si, além de serem com relação ao zigoto do qual procedem, e se relacionam umas com as outras constituindo uma unidade orgânica.

Esta interação célula-célula ativa caminhos intracelulares bem sinalizados que modificam a expressão do genoma e assim informam a cada uma das células da sua identidade como parte de um todo. Desse modo, cada uma das células do embrião possui uma história espacial e temporal como células diferentes de um único organismo: sabe-se que cada célula ou grupo de célula tem uma orientação para o seu destino e para a sua função, ainda que não se tenha chegado o tempo preciso para tal organização corporal.

Com palavras mais simples: na massa celular interna já estão presentes o sistema nervoso central, o sistema circulatório, o respiratório, o digestivo, o procriativo, o renal, o esquelético, o muscular, o visceral, etc., ainda que não tenha adquirido a sua forma final e a sua função específica.

É importante saber que as células embrionárias podem morrer devido a alterações cromossômicas, a defeitos genéticos, a um ambiente uterino desfavorável e, especialmente, se os embriões resultaram de fecundação e cultivo in vitro.

A morte dos embriões pode ocorrer por carência de proteínas necessárias para a sobrevivência ou segundos antes da implantação, quando se produz uma redução do número de células da massa celular interna.

Nos embriões cultivados in vitro a taxa de mortes pré-implantórias ou precoces é maior em embriões humanos do que nos de animais, e isto possivelmente se deve à alta taxa de anormalidades causadas pelas condições do meio de cultura, como a falta de fatores de crescimento ou por existir um excesso de produção de espécies reativas de oxigênio. (cf. trabalhos científicos recentes, tais como: Jurisicova. A., Acton, B.M. (2004) – Deadly decisions: the role of genes regulating programmed celldeath in human preimplantation embryo development, Revista Reproduction 128, 281-291).

Em vista desses conhecimentos científicos recentes pode-se aplicar os princípios éticos universais (lei natural) às pesquisas atuais realizadas com células-tronco e ao uso terapêuticos dos resultados nela obtido.

Ao início dessa palestra foi dito que “o zigoto é a única realidade unicelular intrinsecamente totipotente, capaz de desenvolver-se até ser um organismo completo”.

Dessa célula procede as outras células da pessoa enquanto embrião nos seus primeiros dias, e todas elas mantêm esta totipotencialidade inicial, podendo dar origem a qualquer tipo celular, embrionário (massa celular interna) ou extra-embrionário (trofoblasto).

Depois que acontece a nidação, quando o embrião chega a outra etapa do seu desenvolvimento (gástrula), as células da massa celular interna se vão diferenciando e se comprometendo com linhagens específicas. A partir da nidação essas células da MCI são somente multipotentes, isto é, progenitoras ou precursoras da formação de todos os tecidos adultos, porque se multiplicam limitadamente antes de se diferenciarem.

Quando se extraem as células do MCI do ambiente embrionário natural e são cultivadas in vitro elas proliferam ilimitadamente a mesmo tempo que mantem a potencialidade de gerar células derivadas de qualquer uma das linhagens do embrião. Essas células derivadas in vitro do MCI, capazes de diferenciarem-se na direção das três lâminas – endoderme, mesoderme e edoderme – são pluripotentes e denominadas células-tronco embrionárias (CTE).

Essas células-tronco embrionárias (CTE) isoladas dos blastocistos e cultivadas sobre células (fibroblastos) de ratos irradiados, multiplicam-se e formam células neuronais (progenitores neuronais) e corpos embrióides (agregados ou aglomerados com as três lâminas acima mencionadas).

Esses corpos embrióides oferecem às CTE o nicho apropriado para o seu compromisso de formar diversos tecidos; esses corpos embrióides apresentam certa organização tridimensional, mas carecem da informação para desenhar o corpo. As células que os formam perderam a ‘memória da história’ prévia e dos lugares que ocuparam no processo organizacional do embrião do qual procedem e não são capazes de formar os eixos desse mesmo embrião.

Essas células troco-embrionárias cultivadas in vitro conservam enzimas que lhe permitem a multiplicação de forma indefinida, daí que retem as propriedades de gerar teratomas in vivo e também diferenciarem-se para todos tipos de células do corpo.

Além desse efeito não desejado, as CTE podem ser imunologicamente rejeitadas, o que exige um controle de segurança dos transplantes dessas células cultivadas in vitro.

As futuras terapias regenerativas ou as linhas de pesquisas com CTE exigem a destruição de embriões humanos em fase de blastocisto, o que não é nem racional nem ético planejar uma pesquisa ou uma terapia que por si mesma seja “consumidora de embriões”, ainda mais quando a terapia regenerativa com células-tronco adultas (CTA) já apresentou resultados positivos.

O crescimento celular é um processo cuidadosamente regulado. Se não funcionar o sistema de controle que regula a divisão celular induzida por fatores de crescimento ou se perde o controle da morte programada ou as células começam a multiplicarem-se de forma incontrolável resultando numa massa tumoral.

Cada célula tem uma informação exata da sua história, de onde está e para onde se dirige. A diferenciação de uma célula para uma etapa de alta especialização é acompanhada de uma perda da capacidade de multiplicar-se, ao mesmo tempo que se conserva a memória dessa sua história como parte de um organismo.

Um conjunto de células diferenciadas é um organismo e constitui uma unidade funcional e vital na qual os processos da multiplicação, de diferenciação, de mobilidade e de morte celular estão controlados, acoplados e sincronizados.

A reversão acidental do programa de desenvolvimento numa célula rompe esse delicado e equilibrado e isto constitui a raiz do processo tumoral. Há também uma cadeia de expressão de gens que permitem e controlam os três processos chaves para a vida de um organismo e conhecem-se cada vez mais as influências do meio e a mudança nos níveis de expressão de uns poucos gens reguladores, que podem permitir um desenvolvimento da potencialidade ou um desvio da mesma para a formação de células-mães de tumores.

Finalmente, o critério de morte cerebral – ausência de circulação sanguínea a nível do tronco cerebral – nada mais é do que um sinal de ausência de atividade de todo o cérebro, mas não significa definitivamente que a pessoa morreu, nem tampouco o estado do organismo físico nesses momentos finais seja equivalente ao estado embrionário, onde há uma intensa e dirigida atividade celular – genética, proteínas, enzimas, etc.

“Quando a Igreja declara que o respeito incondicional do direito à vida de toda pessoa inocente – desde a sua concepção até a morte natural – é um dos pilares sobre o qual assenta toda a sociedade, ela ‘quer simplesmente promover um Estado humano. Um Estado que reconheça como seu dever primário a defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente da mais débil’ (cf. João Paulo II, Discurso aos participantes no Encontro de estudos sobre o Direito à vida e a Europa, 18.XII. 1987). O Evangelho da vida é para o bem da cidade dos homens. Atuar em favor da vida é contribuir para a renovação da sociedade através da edificação do bem comum. (...) Só o respeito da vida pode fundar e garantir bens preciosos e necessários à sociedade como a democracia e a paz. De fato, não pode haver verdadeira democracia, se não é reconhecida a dignidade de cada pessoa e não se respeitam os seus direitos” (cf. João Paulo II, Encíclica Evangelho da vida, 25.III.1995).

+ Dom Antonio Augusto Dias Duarte

Bispo Auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro