Tenho escutado quase como num estribilho a resposta a qualquer questão levantada : "É assim porque está na lei" Quem sabe será bom uma parada para reflexão sobre :

O SENTIDO DA LEI - CORRELAÇÃO LEI E LIBERDADE - REGULAMENTO E VIDA

Graciano († antes de 1160 ) indiscutível mestre no campo do direito canônico era animado do espírito de reunir textos discordantes, questioná-los, argumentar os pró e contra de cada um e fazer uma concordância de discordantes, trazendo ordem e sentido ao conjunto. Seu método foi depois abandonado pelos legistas da época posterior, que deixaram de ser inquiridores, contentando-se em expandir análises dos textos. As sugestões criativas ficaram raras; os legisladores ficaram satisfeitos mas alienou-se o povo de Deus que não encontrou mais a " inteligência das leis " e muito menos a frescura da boa nova nos manuais produzidos pelos doutores da lei.

Não basta impor uma lei para considerá-la aceita ; a mente e o coração devem ser persuadidos. Para uma dedicada obediência deve-se conhecer e compreender o porque da lei.

A AUTORIDADE SOBRE PESSOAS INTELIGENTES DEVE RESPEITAR SUA INTELIGÊNCIA.

Como chegar a isso ? Uma proposta seria a de se Ter diante das leis 4 horizontes :

1. O horizonte do texto : Todo trabalho deve começar com a pergunta padrão sobre o significado da lei em seu texto e seu contexto ( cn 17 ). A maioria das pessoas estaciona aqui.

  1. O horizonte dos valores : Que valores as leis pretendem promover e apoiar ? E´ preciso deixar o espírito brilhar através das normas.

     

     

  2. O horizonte da vida : Após a promulgação as leis são destinadas a entrar no cadinho da vida. E´ neste ponto que as normas impessoais, abstratas encontram as situações pessoais particulares e concretas. Disso nascem as questões : São elas sabiamente medidas para a comunidade ? São prudentemente ajustadas às circunstâncias ? Trazem harmonia e fazem crescer a unidade ? ( estas questões são vitais para o progresso da comunidade )

     

     

  3. O horizonte do futuro : As questões ligadas a este horizonte dão uma oportunidade à criatividade . Será que há uma necessidade que postula uma nova lei ? Será que há um peso que precisa ser aliviado ? Há uma estrutura que precisa ser reformulada ?

     

A partir destes horizontes, os responsáveis pelas leis e normas demonstrariam seu irrestrito desejo de conhecer e é claro, um irrestrito desejo de amar, porque o propósito não poderia ser outro a não ser o de servir à comunidade, o povo de Deus. E´ dinamismo que pode jorrar vida para dentro do Código, das constituições e dos estatutos.

(fonte : revista concilium n.º 2267. Petrópolis, Vozes, s/a. )

A lei não nasce nos escritórios curiais . Quando começa a acontecer uma lei, sua formulação, sua promulgação, anteriormente a ela já havia alguma experiência na Igreja, de uma forma ou de outra. Isto é, quando uma lei é aprovada, ela já teve uma vida anterior vivida em alguma práxis normativa.

Parece-me que devemos dar uma atenção maior aos costumes, em nossa realidade brasileira latino americana. Os cânones 23 a 28 mereceriam um aprofundamento, com base inclusive teológico-eclesiológica, estando muitas vezes subjacente neles a tensão permanente entre igreja local e igreja universal.

O COSTUME ( segundo os cânones 05 ; 23 a 28 )

Sendo os costumes leis não escritas, práticas vivas da comunidade, surgidas dentro dela, eles se tornam a fonte de melhor interpretação da lei, conforme canoniza o 27.

Se, portanto, uma lei brota em uma burocracia que não leva em conta o costume no viver, ela carrega uma fraqueza em si mesma, porque nasce sem buscar a seiva da vida que está passando por outra estrada.

O Código nos apresenta três tipos de costumes :

1- Os Imemoriais ,anteriores à memória de qualquer pessoa viva

2- Os Centenários , que têm mais de 100 anos. O c. 05 diz que têm força de lei na comunidade, mesmo que sejam contrários ao CIC

3- Os Novos costumes com força de lei se seguidos por 30 anos (cc 24-28)

Na igreja primitiva e medieval, como sabemos, eles tinham papel importante muito mais que hoje, uma vez que agora predomina a legislação. Mesmo assim, ele deve ser uma força importante para nós na América Latina, como uma alavanca na promoção de uma sadia diversidade, respeitando-se a unidade católica canônica .

Alguns costumes estão de acordo com a lei; outros não estão relacionados com a lei; mas não poucas vezes, alguns outros podem estar em contradição com a lei eclesiástica; estes últimos por vezes estão tão arraigados que " forçam" uma mudança na lei universal.

Tomo um exemplo : a idade para a recepção do sacramento da confirmação (era por volta dos 7 anos, mas poderia ser antes. Na lei de 1917 não se previa o adiamento. A santa Sé pedia que se mantivesse a seqüência dos 3 sacramentos de iniciação) . Começou-se o costume de se crismar após os 7 anos. Costume contrário à lei universal. O costume persistiu até que em 1971 as Conferências Episcopais fixaram uma idade maior e daí ficou sendo uma possibilidade prevista na própria lei.

A finalidade dos costumes não é que eles se tornem leis; sua função principal é interpretar a lei numa comunidade local. Cn 27 O desenvolvimento do costume local é um dos principais meios para se adaptar uma lei universal às diversas culturas.

Huels, J. autor do artigo, na revista The Jurist 47 ( 1987 ) p. 249 diz que " O costume é um mecanismo chave para a inculturação do Direito Canônico ".

Como criações humanas, as leis não podem pretender possuir a intangibilidade da perfeição; elas pretendem se impor ao respeito geral, serem obedecidas, no entanto, nós canonistas devemos ter sempre uma clara consciência de sua relatividade na história que acabam mostrando seus limites.

Na sua universalidade a lei abrange abstratamente uma infinidade de situações concretas possíveis. Sua aplicação automática não é justa, não leva em conta as diferenças. As leis devendo ser parâmetros sem promoverem uma padronização empobrecedora da diversidade de opções morais de que os seres humanos são capazes.

A observância da lei vai depender de sua interpretação., que quer dizer de sua adequação ao princípio de justiça que está presente nela ao caso particular em que ela está sendo aplicada.

Sem desrespeitar a lei o recorrer aos costumes, e à opinião dos doutores quando em uma situação não prevista pelo legislador deve ser caminho para uma maturidade na fé e na obediência. Não sei se escrevo um absurdo jurídico, mas ao longo da história, voltando a fita para um vídeo tape, as leis se modificam, crescem, se ampliam, se reestruturam, a partir de desobediências, ou melhor, de obediências à vida da comunidade, fazendo chegar ao legislador a urgência das mudanças na lei.

O código reconhece a " opinião comum e constante dos doutores." - c. 19 , como uma das principais referências para se tratar de casos para os quais não existe lei.

Quando um caso não está previsto na lei, ou quando a aplicação da lei ao caso não é clara, deve-se consultar autores especializados. E´ evidente que suas opiniões não coincidem quase sempre, e portanto será difícil encontrar uma " opinião comum e constante dos doutores "(professores de direito canônico e de teologia) sobre uma situação particular, concreta.

Vem-me à memória a evolução da lei sobre os ministros extraordinários da comunhão.

No Código de 1917 ministro ordinário é o sacerdote; ministro extraordinário é o diácono; nem em casos de emergência algum outro poderia ser. No entanto Sanchez e S. Afonso de Ligório argumentavam ( contra a praxe de seu tempo ) que leigos podiam receber tal delegação em caso de necessidade, quando não houvesse clérigo à disposição, especialmente como viático para os moribundos. O código de 1917 não assumiu esta opinião e se alguém fosse privado da comunhão pela falta do sacerdote, deveria então fazer a comunhão espiritual.

Em 1927, foi concedido aos ordinários do México a faculdade extraordinária de permitir a homens piedosos que levassem a comunhão aos doentes. Em 1930, um indulto para a Rússia, permitindo a homens piedosos que levassem a comunhão aos católicos na prisão

Um número cada vez maior de canonistas e moralistas foi assumindo as opiniões de Sanchez e Afonso de Ligório, ampliando-se os casos até que se fosse impossível ir ao pároco ou ordinário do lugar, um clérigo de ordens menores ou um leigo podiam presumir a licença e levar o viático ao moribundo.. Deste modo, os autores estavam indo além da praxe concreta da Santa Sé.

Na década de 1940, a opinião comum dos canonistas era a de que pessoas leigas podiam ser ministros extraordinários da comunhão, mesmo não havendo mudança na lei que o permitisse A autorização geral só aconteceu em 1973 por um decreto da Congregação para a Disciplina das Sacramentos e solidificada no código de 83 nos cânones 230 § 3 e 910 §2 .

Conclusão

O Papa faz as leis para a igreja universal, e o bispo faz leis para sua própria diocese, dentro de sua competência. Mas, raramente as leis da igreja são criadas apenas pelo próprio legislador..

A lei escrita representa uma prática que já existia na igreja. E tal prática vai se tornando suficientemente madura até ser padronizada em forma de lei escrita, codificada. A lei segue a vida, Vem depois da vida. Ela é a consolidação de um costume vivido.

(síntese do artigo de John M. Huels. Da prática à lei. Concilium n º 267 - Vozes -ano 1996 n º 5 - Teólogo da ordem dos servos de Maria - Servitas - nasc.1950 - prof. em Chicago)