DIREITO NATURAL AO MATRIMÓNIO

   

MIGUEL FALCÃO

 

Todo o cristão - como aliás todo o homem - tem direito inato ao matrimónio. Geralmente, a doutrina canónica fala de ius connubii para designar esse direito natural. Contudo, trata-se de uma expressão clássica do direito romano, significando precisamente que nem todos os homens gozavam do direito ao matrimónio.

Para o direito romano, o matrimónio (nuptiae) era uma situação honrosa de convívio conjugal entre um homem e uma mulher que tinham certa dignidade. Só gozavam do ius connubii, isto é, o direito a viver em matrimónio, os cidadãos romanos livres e de vida digna; nesse caso, essa união tinha relevância jurídica (iustum matrimonium). Nos casos em que, mesmo havendo aparência social de matrimónio, os cônjuges não gozassem do ius connubii (por não serem cidadãos romanos ou por um deles estar abrangido por alguma proibição matrimonial), a união não tinha a mesma relevância para o direito (iniustum matrimonium). O ius connubii aparecia, assim, como uma capacidade jurídica para o matrimónio, reconhecida pelo direito.

Por outro lado, mesmo socialmente não podia haver matrimónio para os escravos, sendo essa união conjugal um contubernium; e entre um senador e a liberta era considerado socialmente mais honroso viver em concubinatus do que em matrimónio. A diferença estava em que, no matrimónio, a mulher (uxor) participava da dignidade do marido (honor matrimonii), a união era monogâmica e exigia-se fidelidade. Além disso, o concubinato e o contubérnio eram precários em duração [1].

Nos primeiros tempos, o Cristianismo assumiu os costumes e o direito dos povos, desde que não estivessem em contraste com o Evangelho, ao mesmo tempo que os vivificava com a fé (inculturação). Em relação ao matrimónio romano, a novidade foi sobretudo a indissolubilidade. Além disso, qualquer que fosse a sua condição social, o cristão podia viver em união conjugal com características semelhantes [2]. Deste modo, a expressão ius connubii foi ganhando o sentido de direito natural ao matrimónio.

O actual cân. 1058 (que reproduz o c. 1035 do anterior Código) tem sido entendido como expressão do direito natural ao matrimónio: Omnes possunt matrimonium contrahere, qui iure non prohibentur (Podem contrair matrimónio todos aqueles que não estejam proibidos pelo direito). Na perspectiva do Código de 1917, sublinhava-se a segunda parte do cânon, uma vez que ele encabeçava o capítulo dos impedimentos: isto é, as proibições estabelecidas pelo direito é que delimitam o alcance do direito ao matrimónio. Parecia como se se desse mais importância ao que o direito positivo determinava. No Código de 1983, o cânon situa-se na parte geral do título sobre o matrimónio e realça-se a primeira parte, precisamente o direito natural ao matrimónio. Parece como se se desse mais importância ao direito natural, podendo discutir-se em que medida pode o direito positivo limitá-lo.

O direito natural ao matrimónio é um direito fundamental da pessoa humana, consequência da inclinação natural ao matrimónio, devida à complementaridade homem-mulher. Ele deve ser entendido, não só como direito à celebração do matrimónio, mas também como direito à protecção e defesa do matrimónio celebrado. Este deve ser o objectivo do direito positivo. Na Igreja, o direito natural ao matrimónio é reforçado pela vocação ao matrimónio da maior parte dos fiéis, e como tal deve ser reconhecido e protegido pela autoridade e comunidade eclesiais [3].

A Carta dos Direitos da Família , apresentada pela Santa Sé em 22-X-83, expõe de modo claro esse direito: "Cada homem e cada mulher, tendo atingido a idade matrimonial e a capacidade necessária, têm o direito de contrair matrimónio e constituir família sem discriminação de nenhum tipo; as restrições legais quanto a exercer este direito, sejam elas de natureza permanente ou temporária, podem ser introduzidas unicamente quando requeridas por graves e objectivas exigências da instituição do próprio matrimónio e do seu carácter social e público; devem respeitar, em todo o caso, a dignidade e os direitos fundamentais da pessoa humana" (art. I, a).

 

 

 

(Celebração Litúrgica, 39 [2007/08], 2, pp. 540-541)



[1] Cf. M. FALCÃO, Las prohibiciones matrimoniales de carácter social en el Imperio Romano, Pamplona 1973, pp. 5-10, 27-28; J. GAUDEMET, Le mariage en Occident, Paris 1987, pp. 29-31, 36-38.

[2] Cf. M. FALCÃO, Atitude da Igreja perante as uniões conjugais da Roma clássica, in Theologica, VIII (1973), fasc. 3, pp. 373-398.

[3] Cf. M. FALCÃO, Direito natural ao matrimónio no Magistério da Igreja, in Celebração Litúrgica, 30 (1998/99), 1, pp. 248-252.