Introdução

A pena canônica tem um significado profundamente pastoral já que busca unicamente a integridade espiritual e moral da Igreja inteira e o bem do próprio culpado; desse modo, os Ordinários, que possuem o poder para aplicá-la, devem fazer uso desse poder que lhe compete somente quando realmente for necessário para defender a disciplina eclesiástica (cf. cânn. 1317 e 1341). Toda pena, portanto, ao ser infligida, deve levar em consideração os seguintes aspectos:

a) a reparação do escândalo;

b) o restabelecimento da justiça e,

c) a emenda do réu, recordando-se sempre e, conseqüentemente, que a salus animarum é, na Igreja, a lei suprema (cf. cân. 1752).

I. O caminho a ser percorrido antes de aplicar as sanções penais

O cân. 221, § 3, estabelece que "os fiéis têm o direito de não serem punidos com penas canônicas, a não ser de acordo com a lei". Desse modo, para o pleno cumprimento dessa normativa, faz-se necessário percorrer o seguinte iter para a aplicação das sanções penais na busca primária que a justiça seja estabelecida.

I.I Ao tomar conhecimento do delito:

O Ordinário quando tomar conhecimento da notícia de um delito, considerando o grau de verdade da mesma, excetuando o fato de que uma investigação a esse respeito seja inteiramente supérflua, porque o delito cometido é completamente certo, poderá proceder como está prescrito nos cânn. 1717-1719, ou seja, dar início a uma investigação prévia que consiste em: pessoalmente, ou também por intermédio de uma pessoa idônea, que exercerá a função de investigador, buscar indagar, nomeadamente o seguinte:

a) a respeito da real existência dos fatos, das circunstâncias e da imputabilidade, ou seja, se a notícia do delito seja devidamente fundada; se possua, de fato, o que designamos na justiça de fumus veri facti;

b) quais são as circunstâncias relevantes no caso para serem examinadas, pois essas podem ser: eximentes (cf. cân. 1323), atenuantes (cf. cân. 1324) ou agravantes (cf. cân. 1326)

c) e se a ação delituosa seja gravemente imputável ao seu autor (cf. cân. 1321).

O Ordinário dará, então, um decreto nomeando aquele que constituiu como investigador, caso não faça pessoalmente a investigação.

I.II O procedimento da investigação prévia:

Nesse momento, então, deverão ser prudentemente observados três pontos fundamentais:

a) reserva na investigação - tendo-se o devido cuidado para que o indiciado, ou mesmo a vítima, não sejam prejudicados, em sua boa fama (cf. cann. 220, 1390, § 1) , devendo, desse modo, tudo ser conduzido com grande reserva e profundo respeito.

b) a tarefa do investigador - que deve prometer cumprir fielmente o seu ofício, mantendo o segredo, segundo o que prescreve o cân. 471, pois sua tarefa é semelhante àquela do juiz auditor; embora se trate de um procedimento administrativo, deverá recolher as provas, com as quais buscará esclarecer as circunstâncias e o nível de abrangência do comportamento delituoso e transmiti-las ao Ordinário que o encarregou de tal tarefa ou ao seu legítimo sucessor. O investigador, entretanto, não poderá jamais exercer a função de juiz na causa que investigou, por esse motivo não se aconselha que essa tarefa seja confiada ao Vigário Judicial, pois assim ele não poderia atuar por ocasião do julgamento da causa.

c) conclusão da investigação - que acontece, a juízo do Ordinário, quando os elementos, parecerem bastar, recordando-se que o procedimento não seja demasiado prolongado, para que o delito não caia em prescrição (cf. cân. 1362), a conclusão deve ser feita com um decreto no qual o Ordinário determine: a) se é possível um processo para aplicar a pena; b) se esse processo seja conveniente, observando o que assinala o cân. 1341; devendo, então c) escolher a via pela qual se aplicará a pena, que pode ser a judiciária ou a administrativa, denominada extrajudicial.

I.III A conclusão:

Os elementos reunidos (autos, decreto inicial e de conclusão e também tudo aquilo que precede a investigação) que não forem necessários para o processo penal sejam guardados no arquivo secreto da cúria (cf. cân. 489).

O procedimento a ser tomado após a escolha da via administrativa ou judiciária está determinado nos cânn. 1720; 1721-1728 (prevendo-se, no último desses, também a utilização dos cânones do juízo em geral e aqueles do juízo contencioso oral), respectivamente, recordando-se de que para a escolha da via administrativa, que é extrajudicial, devem coexistir, portanto, concomitantente as três condições:

a) justa causa;

b) não se pode declarar ou infligir penas perpétuas (demissão do estado clerical) e,

c) a lei ou o preceito que constituem a pena não a vetem como estabelece o cân. 1425, § 1, 2o.

I.IV O procedimento por via administrativa:

O decreto conclusivo de um processo administrativo deve ser claro e completo, com características análogas ao que é pedido no direito para uma sentença judiciária, devendo conter os seguintes elementos:

a) indicação do Ordinário e da sua competência, além do nome dos dois assessores e no caso no qual atue um delegado, também o decreto de delegação, com a data;

b) descrição da species facti do caso: nome e domicílio do sujeito, fato delituoso e lugar em que foi cometido, citação dos decretos inicial e de conclusão da investigação prévia, com a escolha da via administrativa, precisação da eventual contumácia do réu e indicação dos decretos de citação com as suas respectivas datas.

c) exposição, ao menos breve, em forma escrita, das razões em direito, citando os cânones e as disposições de leis relativas;

d) exposição, ao menos breve, em forma escrita, das razões de fato, demonstrando a imputabilidade do sujeito com a avaliação das acusações, da fundamentação das provas, dos argumentos de defesa;

e) parte dispositiva, na qual o sujeito vem absolvido da acusação ou então se lhe inflige ou declara uma pena por ter sido comprovado o delito;

f) parte executiva, na qual se ordena que o decreto seja executado (cf. cân. 1651);

g) lugar, data e assinatura.

d) notificação do decreto: o decreto penal administrativo, uma vez emanado, deve ser notificado ao réu, para a própria validade.

I.V O recurso ao decreto emanado

O réu, sentindo-se injustiçado, poderá promover um recurso contra esse decreto, de acordo com o Art. 95, § 1 da Constituição Apostólica Pastor Bonus que determina ser a Congregação para o Clero a quem deve ser dirigido o recurso contra um decreto penal administrativo. Esse recurso vai examinado de acordo com o Art. 15 da Pastor Bonus e os Arts. 124 e 128, § 3 do Regulamento Geral da Cúria Romana.

II. Os delitos que competem ao exame e ao julgamento do próprio Ordinário.

O CIC, promulgado para a Igreja Latina assim prevê no cân. 1395:

§ 1. "O clérigo concubinário[1], exceto o caso mencionado no cân. 1394 (que trata daquele que tenta matrimônio, mesmo só civilmente, incorrendo em suspensão latae sententiae e ficando ipso iure destituído de um ofício eclesiástico, devendo haver por parte do Ordinário uma declaração a esse respeito), e o clérigo que persiste com escândalo em outro pecado externo contra o sexto mandamento do Decálogo sejam punidos com suspensão[2]. Se persiste o delito depois de advetências podem-se acrescentar gradativamente outras penas, até a demissão do estado clerical".

Os delitos passíveis de punição determinados por esse parágrafo são:

a) concubinato do clérigo, isto é, uma relação sexual estável com uma pessoa do sexo oposto;

b) situação permanente escandalosa do clérigo em qualquer outro pecado externo contra o sexto mandamento do Decálogo, desde a prática da bestialidade até aqueles atos que são cometidos com as pessoas do mesmo sexo.

As sanções penais previstas para aqueles que persistem em cometer um desses delitos são:

a) censura determinada: suspensão ferendae sententiae[3] preceptiva[4];

b) se permanece no delito, depois de ter sido admoestado do seu erro, ou aumenta a contumácia: penas facultativas ferendae sententiae até a demissão do estado clerical (cf. cân. 290, 1o ; 1336, § 1, 5o).

Para o exame de tais delitos, deverá seguir-se, cuidadosamente, o iter que foi assinalado dantes, no número um desse artigo, sendo, entretanto, competente, em via judicial, o Tribunal Inter-Arqui-Diocesano e para o apelo, os seus respectivos tribunais de apelo.

III. Os delitos que competem ao exame do Ordinário e ao julgamento por parte da Congregação para a Doutrina da Fé.

O CIC, que foi promulgado em 1983 para ser utilizado dentro da Igreja Latina assim prevê no § 2 do cân. 1395:

"O clérigo que de outro modo tenha cometido delito contra o sexto mandamento do Decálogo, se o delito foi praticado com violência, ou com ameaças, ou publicamente, ou com menor abaixo de dezesseis anos, seja punido com justas penas, não excluída, se for o caso, a demissão do estado clerical".

Desse modo, os delitos passíveis de punição determinados por esse parágrafo são exatamente:

Qualquer outra forma de pecado externo contra o sexto mandamento do Decálogo, - não sendo prevista aqui, como anteriormente, a persistência no delito, mas que simplesmente tenha cometido delito - se esse foi cometido com violência = força ou com ameaças ou publicamente ou com menores de dezesseis anos. O ou aqui contido quer, propositadamente, assinalar que se tratam de delitos com facti species diferentes, sendo necessário para que se efetue a punição a prática de apenas um deles e não necessitam, obviamente, serem cometidos simultaneamente.

Sendo assim, as sanções penais previstas para quem comete, portanto, apenas um desses delitos acima referidos são:

penas preceptivas - ferendae sententiae indeterminadas, portanto, - segundo a gravidade do delito - até à demissão do estado clerical.

De acordo com o Art. 52 da Pastor Bonus compete a Congregação para a Doutrina da Fé: "Julgar os delitos contra a fé e os delitos mais graves cometidos, seja contra a moral, seja na celebração dos Sacramentos..."; essa normativa foi asseverada pelo Art. 128, § 2 do Regulamento Geral da Cúria Romana.

No dia 30 de abril de 2001 o Santo Padre, o Papa João Paulo II, emanou a Carta Apostólica em forma de Motu Proprio Sacramentorum sanctitatis tutela, com a qual tipifica os delicta graviora e as penas previstas para esses.

Em 18 de maio de 2001 a CDF enviou aos Bispos e Hierarcas Católicos a Carta dos Delictis Gravioribus; essa Carta assinala a competência e a capacidade jurídica da Congregação de declarar e infligir penas, seja por meio da via administrativa, que por meio da via judiciária. A CDF é a única Congregação a configurar-se como Tribunal ordinário penal, para o conhecimento e a definição das causas nas matérias acima indicadas. A primeira instância pode ser instituída no seio do próprio Dicastério ou pode por esse ser delegada para qualquer Tribunal, enquanto a instância de apelo, nesse caso, única e exclusivamente, será junto à própria CDF, sendo instituída, então, dentro do próprio Dicastério, mesmo se esse julgou em primeira instância, obviamente utilizando-se de outros juízes (cf. cân. 1447). Nessas causas somente sacerdotes podem atuar como juiz, promotor de justiça, notário ou patrono.

III.I As novas tipificações

Indo além daquilo que determinou o Código de Direito Canônico o MP determina que:  "os delitos no campo da moral cometidos por clérigos contra o sexto mandamento do Decálogo com menores abaixo de 18 anos" são reservados ao exame da CDF, valendo observar que a idade, diferentemente do que assinala o cânon foi aumentada em dois anos, seguindo assim o que determina o cân. 97, ou seja, simplesmente menores. Nesse caso, não é apenas a pedofilia (atração sexual por crianças impúberes), mas também a efebolifia (atração sexual por adolescentes) que tipifica claramente o delito que pode ser cometido tanto no campo heterossexual quanto naquele homossexual.

O MP fala de "delictum cum minore", não significando, na prática, somente o contato físico ou o abuso direto, mas inclui também o abuso indireto (p. e.: mostrar pornografia aos menores, exibir-se nu perante menores). Inclui também, certamente, a busca e a gravação (downloading) de pornografia pedófila na internet.

A prescrição para esse delito não acontece até que a vítima tenha completado os seus vinte e oito anos, ou seja, são contados dez anos depois de que a vítima completou os dezoito anos e não dez anos depois que o delito foi cometido. Em 07 de novembro de 2002 o Santo Padre concedeu a CDF a possibilidade de derrogar essa prescrição. Essas causas devem permanecer reservadas sobre o sigilo do segredo pontifício.

III.II O caminho a ser percorrido

Tendo o Ordinário tomado conhecimento de que esse delito tenha sido cometido, e que essa notícia seja, de fato, verossímel, faça pessoalmente uma investigação prévia ou delegue uma pessoa idônea de acordo com o cân. 1717, procedendo do mesmo modo que assinalamos no número um, mas somente ao final, deve transmitir a CDF tudo que for recolhido com referência ao caso, no aguardo de que essa determine como se deverá proceder, se por meio judicial ou extrajudicial, para o exame da causa.

D. Hugo da Silva Cavalcante, OSB



 

[1] O concubinato é descrito pela Rota Romana do seguinte modo: "O comércio carnal entre um homem e uma mulher, com o propósito, pelo menos implícito, de permanecerem no mútuo uso do corpo; portanto, pelo concubinato instaura-se algo semelhante à vida conjugal, mesmo que falte o ânimo marital" (SRRD 22, 1930, n. 66 p. 624; 34, 1942, n. 48, p. 517).

[2] A suspensão (cf. cânn. 1333-1335) é uma censura, exclusiva para clérigos, pela qual se lhes proíbe, parcial ou totalmente, o exercício do poder de ordem, do poder de governo, ou do ofício; bem assim como o direito a receber alguns bens. A suspensão chama-se de ordem, de jurisdição, ou de ofício, segundo o conteúdo da proibição. Os atos proibidos são ilícitos; só são inválidos depois da declaração ou imposição da pena, quando assim o diz, expressamente, a norma penal, que deve ser interpretada sempre de modo estrito (cf. cânn. 18; 34, § 1).

[3] É necessário que o Ordinário a aplique.

[4] Cf. cân. 1344.