Edson Luiz Sampel

O direito canônico, conjunto de normas jurídicas, visa a salvaguardar bens sumamente caros ao povo de Deus, além de criar o pano de fundo, para que os fiéis tenham garantida a liberdade e liberado o acesso ao exímio tesouro do qual a Igreja é depositária.

Os sacramentos decerto constituem a grande marca dos tesouros salvíficos que Cristo entregou à sua Igreja. Tutelá-los é direito-dever inalienável da autoridade eclesiástica. Aliás, todo batizado tem a obrigação de zelar por eles, defendendo-os e venerando-os diligentemente.

A Santíssima Eucaristia, qual augusto sacramento, totius cultus et vitae christianae est culmen et fons, em vernáculo, "é o ápice e a fonte de todo culto e da vida cristã" (cf. cân. 897). Cônscio de sua centralidade no dia-a-dia do cristão, o legislador houve por bem regular a administração deste sacramento.

Nas linhas que seguem, passarei a tecer comentos sobre alguns cânones que regem a Eucaristia, procurando dar um apanhado geral e amplo do regime jurídico deste santíssimo sacramento, frisando os pontos que reputo de maior interesse ao público, sem me deter em filigranas jurídicas.

O código, com espeque na mais sã teologia, enfatiza o fato de que é o próprio Cristo Jesus quem atua no sacramento. O sacerdote, presbítero ou bispo, ao presidir a celebração, fá-lo personam Christi (cf. cân. 899, §2). Dá-se amplo destaque à participação de todos os fiéis ("participando", em latim). Assim, há que se evitar expressões como assistir à missa ou ouvir a missa, porquanto revelam uma passividade que não mais se coaduna com o espírito conciliar, veiculado no atual código.

Ao contrário do que se pensa, o código estabelece o dever do padre ou do antístite de celebrar a Eucaristia diariamente. Reza o cânon 904: immo enixe commendatur celebratio cotidiana; em português, "recomenda-se com insistência a celebração cotidiana". Não se está em face de uma injunção jurídica, mas tão-somente de uma admoestação. É óbvio que o ideal é a celebração diária, haja vista a copiosidade de frutos e bênçãos que o sacerdote pode haurir.

Estabelece o cânon 906: Nisi iusta et rationabili de causa, sacerdos Sacrificium eucharisticum ne celebret sine participatione alicuius saltem fidelis. Traduzindo: "Salvo por causa justa e razoável, o sacerdote não celebre o Sacrifício eucarístico sem a participação de pelo menos um fiel". Comentando este cânon, Pe. Jesus Hortal assevera que tal norma é decorrência da explícita vontade do legislador, no sentido de que o sacerdote não deixe de celebrar o santíssimo sacramento todo dia, mesmo que ninguém esteja presente. De qualquer modo, corroborando o que foi dito no parágrafo anterior, o sacerdote não está de forma alguma obrigado à celebração eucarística diária. Todavia, a ausência de fiéis não poderá ser um óbice à celebração se o sacerdote tiver o saudável costume de celebrar diariamente.

Com o fim de destacar o papel que cada fiel desempenha na celebração eucarística - pois todos participam da mais importante efeméride cristã - o código proíbe que diáconos ou leigos profiram orações que estejam reservadas ao presidente (cf. cân. 907). Tal postura tem, sobremodo, um escopo didático, pois o povo de Deus poderá mais facilmente compreender os sinais exarados e penetrar no mistério inefável que a cerimônia deseja transmitir.

A oração acompanha a vida do crente. Não pode ser imposta a ninguém, já que é fruto de um querer íntimo da pessoa sob o influxo da graça divina. Sem embargo, tendo em vista a excelência do sacramento, o código preceitua que o celebrante ore antes e depois da Eucaristia (cf. cân. 909). O legislador quis, em primeiro lugar, acentuar o caráter altamente sagrado da ação litúrgica que está por se realizar. Outrossim, o objetivo da lei é fazer com que o presidente da Eucaristia não descure de um dever básico, qual seja um contato mais íntimo com Deus que se fará presente sob as espécies de pão e vinho.

O código dá um tratamento bastante cuidadoso no que tange ao viático. A palavra latina viatico quer dizer ajuda no caminho. Deveras, a Eucaristia, enquanto viático, está destinada não só àqueles que se encontram nos estertores, mas a todas as pessoas que estão gravemente enfermas e que poderão obter bastantes bênçãos com a recepção do sacramento. Atribui-se ao pároco, ao vigário paroquial e ao principal da congregação religiosa o mister de administrar o viático (cf. cân. 911).

Todos os cânones do artigo 2 discorrem acerca da participação na santíssima Eucaristia ( sanctissima Eucharistia participanda). Assim, já o cânon 912 estabelece que qualquer batizado (quilibet baptizatus) pode e deve ser admitido à sagrada comunhão. A norma faz a ressalva de que a pessoa não esteja impedida pelo direito, qui iure non prohibetur, porque haverá ocasiões nas quais, infelizmente, o direito criará obstáculos. Nesse diapasão, não poderão se aproximar da mesa eucarística os excomungados e os interditados, bem como os fiéis que, obstinadamente, persistirem na prática de algum pecado grave (cf. cân. 915). Por força desta norma, corroborada pela Exortação Apostólica Familiaris Consortio, de 22 de novembro de 1981, não se admite a participação de divorciados. Eis o que diz, ipsis litteris, o documento pontifício:

"A Igreja (...) reafirma sua práxis, fundada na Sagrada Escritura, de não admitir à comunhão eucarística os divorciados que contraíram nova união. Não podem ser admitidos, do momento em que o seu estado e condições de vida contradizem objetivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja, significada e realizada na Eucaristia. Há, além disso, um outro e peculiar motivo pastoral: se se admitissem estas pessoas à Eucaristia, os fiéis seriam induzidos em erro e confusão acerca da doutrina da Igreja sobre a indissolubilidade do matrimônio."

Com vistas em tutelar a sacralidade da Eucaristia, aprouve ao legislador determinar que o varão, em pecado grave, não deve celebrar o sacramento em apreço, nem o leigo poderá comungar (cf. 1Cor 11, 27-32). Entretanto, o cânon 916 cria uma exceção: nisi adsit gravis ratio et deficiat opportunitas confitendi, isto é, a não ser que exista causa grave e não haja oportunidade para se confessar. Neste caso, sobre fazer um ato de contrição perfeita, o fiel é instado a procurar o sacramento da Penitência tão logo quanto possível.

O cânon 917 foi alvo de longa e polêmica discussão doutrinal. Com efeito, determina o aludido dispositivo legal que o fiel só poderá comungar duas vezes ao dia, sendo que a segunda comunhão terá de ser intra eucharisticam celebrationem. Os canonistas discutiam sobre o significado da palavra iterum ( "de novo", em português), pois, em princípio, do ponto de vista estritamente lingüístico, não se poderia falar na limitação a duas vezes. Consultada sobre o assunto, Roma interpretou oficialmente a norma jurídica, estatuindo que a expressão é restritiva. "Roma locuta, causa finita". Não há mais o que discutir. Todo labor hermenêutico dos especialistas deixa de ser necessário. Tenho para mim que a postura de Roma, limitando as comunhões diárias, deve-se a um certo receio de que haja fiéis que façam um uso pouco devocional ou até mesmo supersticioso do Corpo e do Sangue de nosso Senhor. De qualquer forma, como afirma o Pe. Jesus Hortal, não deixa de ser estranha a situação de quem participa da missa, mas sem poder fazê-lo cabalmente, pois o direito impede a aproximação da mesa eucarística.

Outro ponto relevante, introduzido pelo novo código, diz respeito à advertência para que o sacramento da Eucaristia seja administrado na missa. Sem embargo, razões sérias, a critério do ministro, permitirão que o crente comungue fora da celebração(cf. cân. 918). Assim, um atraso justificado, ou um contratempo, serão motivos relevantes. Mais uma vez percebe-se a preocupação do legislador com uma eventual banalização do sacramento. De fato, infelizmente, há casos de pessoas que querem comungar, mas sem a devida reverência, mantendo uma relação idolátrica ou supersticiosa com o excelso sacramento.

Com relação às espórtulas, vê-se que o legislador procura afastar qualquer identificação com simonia (venda de coisas sagradas). É certo que o ministro faz jus ao sustento oriundo do próprio altar ao qual serve (cf. Mt 10,10; 1Cor 9,13). Nada obstante, não poderá fazer acepção de pessoas, levando em consideração o poder econômico do fiel. Pe. Jesus Hortal sintetiza de forma lapidar o relacionamento justo entre o ministro e os estipêndios:

" O sacerdote deveria dar prova de desprendimento; o ideal seria que ele pudesse dizer, com são Paulo, que não foi gravoso à comunidade." (cf. Os Sacramentos da Igreja na sua Dimensão Canônico-Pastoral, Loyola, 1987, pág. 117).

Os cânones comentados neste artigo demonstram a magna solicitude que o legislador tem para com os sacramentos, máxime a Eucaristia. Sem sombra de dúvida, os sacramentos são o inestimável tesouro da Igreja, à qual me referi no início do texto. O direito canônico não poderia manter-se silente a respeito do tema. O leitor deve ter percebido que o objetivo da regulamentação jurídica não é criar grilhões para a vivência sacramental. Muito pelo contrário. Não houvesse leis claras, protegendo o sacramento da Eucaristia, e, muitas vezes, estaríamos todos à mercê do arbítrio de algum ministro incauto ou não teríamos como exigir nosso direito, por falta de respaldo explícito.

A Eucaristia é a fonte de nossa vida. Descurar desse sacramento seria um equívoco imperdoável do código. Portanto, o legislador não quis ser omisso. Por fim, é importante ressaltar que o regime jurídico deste sacramento, apesar de estar bem detalhado no código, não se esgota nesse diploma legal. As próprias normas litúrgicas nos oferecem uma importante fonte. Além disso, temos as leis extravagantes e a eventual manifestação do Romano Pontífice a propósito do tema, através de motu proprio.

Não se perca de vista o princípio que resume todo labor jurídico no grêmio da Igreja, expresso no adágio latino salus animarum suprema lex est (cf. cân. 1752). Sendo a salvação das almas o grande ideal, o canonista tem a honorável tarefa de criar as condições necessárias, a infra-estrutura, para que tal ordem de coisas se transforme em realidade.