Euclides da Cunha é um engenheiro da redação. Se repararmos bem, seus textos não estão prenhes de palavras incomuns; estão, sim, bem alinhavados e são capazes de comunicar o pensamento com precisão.

Nossa língua tem mais de quatrocentos mil vocábulos. O dicionário é deveras uma mina de ouro nas mãos de quem augura escrever bem e com elegância. Já afirmei isto algures: escrever bem é estar apto a externar as idéias de forma bonita e correta. Digo mais: respeitar a gramática é aprender a pensar. Com efeito, a gramática não é só um conjunto de normas lingüísticas que devemos observar estritamente. Ela é, em primeiríssimo lugar, um método para o aprimoramento do dom de pensar.

O engenheiro Euclides da Cunha soube, como ninguém, aliar a aritmética à arte de escrever. Fê-lo sobretudo no livro que lhe outorgou ingente nomeada: "Os Sertões". É simplesmente saborosa a descrição do sertanejo. Deixemos que o conspícuo escritor e jornalista redija novamente: "O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral." Atente o leitor amigo para o primor de descrição: " A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. (§) É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos." É uma delícia esta frase: " E se na marcha [isto é, na caminhada] estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo - cai é o termo - de cócaras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável."  Os excertos transcritos dão realmente uma idéia da genialidade euclidiana. Por exemplo, o emprego do termo "marcha" por caminhada ou passeio denota quão valiosa é a sinonímia. O sertanejo não "pára", "estaca"; mais um acerto e aprumo de dicção. Outra característica sacada dos trechos acima: a adequação do vocabulário, o que, aliás, é uma constante em todas linhas de Euclides da Cunha. Assim, escreve o correspondente do jornal O Estado de São Paulo: "enrolar" o cigarro, "bater" o isqueiro e "travar" ligeira conversa. Que perfeição! Temos muito que assimilar deste homem erudito, mormente hoje em dia, quando é tão comum ouvirmos, ad nauseam, palavras-coringas, tipo "stress", "stressado", ou locuções como "O senhor coloca bem o assunto", no lugar de "O senhor discorre bem sobre o assunto", ou, então, nosso castigado "O senhor fala bem sobre o assunto". É mister que re-aprendamos a falar e a escrever. Sou da opinião de que a televisão (insisto bastante neste assunto!) tem emburrado os brasileiros, máxime os que pertencem às classes médias.

Há quem dê a Euclides da Cunha o lugar de honra nas letras portuguesas, colocando-o à frente de um Alexandre Herculano, de um Machado de Assis, de um Pe. Vieira, de um Pe. Bernardes, ou mesmo de um Rui Barbosa, sem aludir a outros tantos peritos no ofício da escrita. Assim como assim, creio que Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha é magnífico. Quiçá pertença a outro mundo, quando o público ledor de um jornal era suficientemente culto para ler e degustar textos intemeratos e, essencialmente, belos.

Edson Luiz Sampel