1- Definição e características

Ao primeiro súbito de vista, o direito canônico é simplesmente um ramo do direito; um esgalho jurídico. Todavia, se quisermos haurir um conceito escorreito e cabal do direito canônico ou eclesial, é mister penetrarmos suas raízes mais recônditas; seu leitmotiv, que jaz na essência da Igreja: povo de Deus constituído por obra do Espírito Santo. Neste diapasão, o cânon 204, parágrafo 2, reza que "in hoc mundo ut societas constituta et ordinata, subsistit in Ecclesia catholica, a successore Petri et Episcopis in eius communione gubernata". Na verdade, este dispositivo é de conteúdo constitucional. Como assere Jesus Hortal, referida norma fazia parte do malogrado projeto de Lei Fundamental da Igreja. Nota-se claramente a ênfase ao aspecto societário (ut societas), revelando, desse modo, a natureza jurídica da Igreja, segundo a teoria sociológica do direito, expressa no adágio "ubi societas, ibi ius".

O direito canônico pode ser definido como o conjunto das normas gerais e positivas, que regulam a vida social no grêmio da Igreja católica. Esta definição é da lavra do eminente civilista Radbruch, que não se referiu especificamente ao direito canônico, mas tinha em mente o direito em geral. Às vezes, ouvem-se críticas pueris contra a existência do direito na Igreja. Taxam-no de repressor, dizendo que ele empece a caminhada do povo de Deus rumo ao "escaton". Tal postura revela uma visão assaz perfunctória da própria realidade eclesial. O direito faz-se presente sempre que ocorrer o fenômeno social; onde quer que haja seres humanos reunidos para a persecução de determinado escopo comum.

Tanto a sociedade civil quanto a eclesial perseguem o bem comum. Aliás, é vã qualquer pretensão de criar uma dicotomia entre as "duas sociedades", como se os crentes não fossem também cidadãos. Deveras, trata-se de nuanças diferentes, ou seja, modos peculiares de captar o fenômeno social. Nessa perspectiva, a santidade-justiça não é um apanágio do direito canônico exclusivamente; referido binômio tem de estar presente no direito estatal, permeando-o. Desta feita, não se pode afirmar que existe uma jerarquia entre o direito canônico e o estatal, sendo este inferior àquele. Ambos devem ser instrumentos na consecução de uma sociedade justa e fraterna, em que haja vida abundante para todas as pessoas. A propósito, o direito estatal ou civil está mais bem aparelhado para levar a cabo este ingente mister, pois conta com os atributos da coercibilidade e da sanção, garantidos pelo Estado. Não se pode incorrer na "heresia" que diviniza o direito canônico, pelo simples fato de ele ter sido gestado na Igreja. Não nos esqueçamos que a "barca de Pedro" é santa e pecadora. O direito canônico não pode fugir à esta lógica inexorável. Quando, v.g., o Código Civil prescreve os direitos inalienáveis dos hipo-suficientes, fá-lo ao lume de valores evangélicos, albergados na sociedade brasileira cristã-católica. Revela-se, dessarte, um portentoso mecanismo no soerguimento dos inermes e excluídos. O fim do direito canônico é a salvação das almas: "salus animarum suprema lex est", reza o axioma. Todavia, aludido desiderato não será alcançado só por força do direito canônico. O ordenamento jurídico eclesial está decerto a serviço da implementação do Reino de Deus, mas não é, nem de longe, o único elemento em prol do atingimento desse objetivo soteriológico. O "escaton" começa já na existência atual, "hic et nunc", consubstanciando-se num mundo à semelhança do Evangelho, isto é, onde as pessoas de todos os credos, ou atéias, vivam com dignidade, tendo o necessário sustento, fruindo das benesses sociais, enfim, desfrutando de uma vida que paga a pena ser vivida.

Com o advento do atual código, promulgado por João Paulo II aos 25 de janeiro de 1983, dá-se início a uma novíssima fase do direito eclesial. O Concílio Vaticano II soprou forte sobre a Igreja, trazendo-lhe uma novel visão de si mesma, abrindo-a ao mundo, aos católicos e acatólicos, a todos os homens de boa vontade. A enorme bênção do concílio conseguiu resgatar o supra-sumo do cristianismo, vale dizer, a vivência dos valores industriados por Jesus Cristo, o compromisso com a construção de um mundo justo e fraterno e a opção preferencial pelos pobres. Quem abre o atual código, logo percebe o "perfume" do concílio; os novos ares que ele dá à Igreja. Não olvidemos o fato de que o concílio ainda não foi totalmente implementado. Ousaria afirmar que o Concílio Vaticano II é o concílio do terceiro milênio. Muito foi posto em execução, mas há ainda um longo caminho a percorrer. Quiçá a grande novidade desse último concílio foi o tratamento dado aos leigos. Antanho, nós outros éramos vistos como cidadãos portadores de uma certa "captis diminutio", meros receptores dos ensinamentos dos hierarcas. Fazia-se a distinção entre Igreja docente e discente. O concílio, felizmente, sob a égide do Evangelho, alumia essa questão, outorgando ao leigo o papel que lhe é devido em razão do sacramento do batismo. O código, como não poderia deixar de ser, seguiu essa mesma linha. Deparam-se-nos bastantes cânones que são verdadeiros mecanismos de uma "cidadania laical". Agora, o leigo tem o direito reconhecido de externar suas opiniões aos pastores. Possui, em síntese, voz altissonante dentro da comunidade eclesial. É um fiel em pé de igualdade com os clérigos.

A definição de direito canônico perfilhada por Ghirlanda é a seguinte: "conjunto das leis e das normas positivas dadas pela autoridade legítima que regulam o entrecruzar-se das relações intersubjetivas na vida da comunidade eclesial e, assim, constituem instituições, cuja totalidade produz a ordenação canônica." Vê-se que não há diferença substancial entre este conceito e aqueloutro declinado por Radbruch. O discrímem poderia estar presente na ontologia de determinadas normas, que são de origem divina, consoante o escólio de Rafael Llano Cifuentes. Ao contrário do direito estatal, o ordenamento jurídico eclesiástico possui normas, encontradiças quer na bíblia quer na sagrada tradição, de caráter estritamente divino. Como exemplo, poderíamos citar o cânon 205, que alude aos batizados, membros do povo de Deus.

2- Historicidade e essência do direito canônico

Ao largo dos séculos, o direito canônico assumiu formas históricas. Ultimamente, ele se expressa sobremaneira através do Codex Iuris Canonici, secundando, dessa maneira, o direito estatal de base românica (Brasil, Itália, Portugal, Espanha, França etc.). Deveras, a codificação revelou-se um eficiente mecanismo para a veiculação dos mandamentos legais, malgrado juristas do quilate de Savigny e Gabba terem se insurgido veementemente contra esta técnica, acoimando-a de fossilização do direito. Sem embargo, a codificação tem a grande vantagem de unificar o direito canônico, compactando-o num único diploma. Outro ponto assaz importante é a língua empregada pelo direito canônico. É certo que o latim é o idioma do código canônico, sendo que as traduções anexas servem tão-somente de mero referencial. Os operadores do direito terão de se ater ao texto latino exclusivamente, sob pena de não lograrem uma exegese autêntica. A razão de o direito canônico estar vertido em latim é muito simples. Sendo um ordenamento de perspectivas internacionais, o direito eclesial necessita de uma linguagem uniforme, que valerá tanto aqui no Brasil como no Japão. O legislador houve por bem eleger o latim, haja vista o grande uso deste idioma no grêmio da Igreja, se bem que hoje em dia o latim encontra-se relegado a segundo plano, até mesmo entre os padres, que não conhecem mais a língua de Cícero. Talvez, num futuro não muito distante, o direito canônico seja escrito em espanhol ou inglês, por serem estas as línguas mais faladas no mundo. Nada obstante, enganam-se os que crêem que o direito canônico emprega apenas a língua latina. Com efeito, o expoente máximo desse ramo jurídico, qual seja o código canônico, foi redigido em latim, como vimos acima. Sem embargo, há bastantes leis, máxime aquelas elaboradas nas Igrejas particulares, expressas no vernáculo. Recentemente, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) expediu um decreto geral sobre as universidades católicas, regulando a constituição apostólica "Ex Corde Ecclesiae". Trata-se de legítimo direito canônico e escrito em português. Conclui-se, pois, que a regra é o latim para o direito na Igreja. Todavia, há exceções, podendo o direito utilizar outros idiomas.

A Igreja foi fundada por Jesus Cristo e é constantemente assistida pelo Espírito Santo. Assim, o direito canônico não deixa de ser manifestação desse Espírito que alumia a jornada do povo de Deus no mundo. Essa realidade dogmática da Igreja pode ser vislumbrada no direito canônico, que institucionaliza a Igreja como corpo de Cristo. Sendo mistério inefável, a Igreja, enquanto obra do Espírito Santo, não está reduzida aos contornos jurídicos. Como leciona Guirlanda, o direito canônico está contido nessa realidade dogmática, mas não a exaure. No mesmo sentido é o magistério de Dominique Lê Tourneau, quando afirma que a finalidade do direito canônico é "suscitar en la sociedad eclesial un orden que conceda prioridad al amor, a la gracia, a los carismas y que facilite al mismo tiempo su progreso ordenado en la vida de la sociedad eclesial y de todos los que forman parte de ella."

O cânon 208 e seguintes formam a base para um estatuto comum de todos os fiéis batizados e, por isso, incorporados à Igreja (cf. cân. 96). Formalmente falando, o direito canônico é contingente, porquanto representa o modus vivendi do povo de Deus em determinada época. O código de 1983, por exemplo, quis ser o instrumento de implementação do ideário do Concílio Vaticano II. Apesar de a doutrina ressaltar esse aspecto da contingência do direito eclesial, frisa-se amiúde o objeto material do ordenamento jurídico, isto é, a realidade dogmática, a qual aludimos linhas acima, que não é absolutamente contingente ou pássageira, vez que goza do apanágio da essencialidade. Desta feita, ao regular os direitos e deveres dos fiéis, o código, que é tecnicamente contingente, discorre a respeito de fatos e realidades, que são essenciais. O direito canônico deve preservar esses componentes essenciais. Esta é sua missão. Ao mesmo tempo, não pode descurar das necessidades e cosmovisão do homem hodierno. Ao definir a lei canônica, Aymans, citado por Dominique Le Tourneau, indica com clarividência esta dualidade: "una ley fundada sobre la fe, elaborada con el auxilio de la razón y orientada a la promocion de la vida cristiana."

É da essência do direito canônico regular matéria de fé, como os sacramentos. Toca-lhe outrossim o desiderato de fomentar a vivência da virtude teologal da caridade entre os membros da Igreja. O cânon 210 fala na obrigação que todos têm de levar uma vida santa (sanctam vitam ducendam), ensejando nos católicos o propósito de praticarem o amor entre si. Pode-se asserir que tal característica pertine com exclusividade ao direito canônico. O direito estatal ou civil leva em consideração aludidos valores, já que a sociedade política é composta de cristãos. Contudo, não há menção explícita ao amor como uma obrigação jurídica.

3- Fundamentos antropológicos do direito canônico

A- A dignidade do homem

A Igreja, "perita em humanidade", para parodiar Paulo VI, é, com certeza, a instituição que mais frisou a dignidade do ser humano. Aliás, não poderia ser diferente, porque ao lume da sagrada revelação, depreende-se que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26). Por isso, o direito canônico, também neste ponto, diferença-se do estatal, já que enxerga o ser humano de uma forma bem mais percuciente, vendo nele um ente que não foi destinado única e exclusivamente para a vida aqui na Terra, mas possui um fim escatológico, marcado para a eterna felicidade, no encontro beatífico com Deus.

Todo direito canônico perpassa este liame da relação do homem com Deus. É sempre a partir deste diálogo humano-divino, ultimamente deflagrado por Jesus e pela Igreja, que o direito canônico regula o complexo das relações jurídicas intra-eclesiais. O homem é considerado insubstituível e sua vida tem valor inestimável. O direito eclesial no seu todo valoriza essas características, ou melhor, arrima-se nelas para reger as relações humanas no seio da Igreja. Desta forma, pode-se afirmar que o direito canônico está imbuído de uma profunda antropologia. Qualquer sorte de legislação, de alguma maneira, embasa-se em critérios antropológicos, vez que o direito existe com vistas no ser humano. Entretanto, relativamente ao direito canônico propriamente dito, frisa-se muito mais essa fundamentação antropológica, porquanto o homem é visto como indivíduo criado por Deus para a felicidade eterna. Como dizem os teólogos, esta beatitude tem sua incoação "hic et nunc"; neste mundo. Daí a grande relevância do direito canônico, cujo escopo precípuo é fornecer os mecanismos, forjando a infra-estrutura, para que a felicidade ocorra entre os homens, mormente no que diz respeito aos cristãos, redimidos pelo sangue de Cristo e incorporados à Igreja pelo batismo. O direito canônico não pode prescindir da antropologia teológica, conforme observa Ghirlanda.

O homem, ser eminentemente relacional, não é chamado sozinho à salvação. Todos os seres humanos são vocacionados. Dada esta nota de sociabilidade do homem, quer no que toca à vida aqui na terra, quer no que se relaciona à salvação, o direito eclesial assume um papel extraordinariamente importante, porque não há relação social que não seja regrada pelo ordenamento jurídico. "Ubi societas, ibi ius"! O direito na Igreja visa particularmente à salvação das pessoas. "Salus animarum suprema lex est." Ao contrário do direito estatal, que não tem esse tipo de preocupação, pois seu objetivo é simplesmente viabilizar a coexistência pacífica entre as pessoas, regulando os conflitos de interesse, o direito canônico, cujo objeto material é a teologia, cumpre um múnus bastante significativo, numa visão holística do ser humano. Sem embargo, é necessário enfocar também o valor do direito estatal, como verberei algures, pois numa sociedade cristã-católica, presume-se que toda espécie de regramento jurídico leve em consideração os valores evangélicos e reflita uma imagem crística do homem. Na prática, contudo, nem sempre isto ocorre. O direito estatal é tão-somente expressão dos anseios da classe dominante e não um instrumento pra a consecução da justiça.

O atributo da sociabilidade do homem foi explanado de maneira brilhante por Paulo VI, ao afirmar que o homem não é pessoa pelo fato de ser social, mas é social porque é pessoa. Isto é exato na ótica da religião cristã. Em razão de sua essência à imagem e semelhança de Deus, o homem abre-se ao próximo, tende a relacionar-se com seus semelhantes; enfim, busca viver o amor e a solidariedade, vez que tais características estão indelevelmente inscritas no seu coração.

B- Direito natural e direito positivo

O direito positivo será tanto mais perfeito na medida em que corresponder ao direito natural. Deveras, nas sociedades saudáveis, esta é a tendência. O direito natural, escrito por Deus na alma do homem, deve servir de critério fundamental na elaboração das leis. É conhecida a definição de lei dada por Santo Tomás: ordenação da razão, para o bem comum, promulgada pela autoridade social. Ora, à luz da ensinança do Aquinate, ordenação da razão nada mais é que o afloramento do direito natural que o homem percebe através da faculdade da intelecto. É importante notar que o direito natural não é um ordenamento paralelo ao direito positivo. Como ensina André Franco Montoro, o direito natural é o conjunto dos princípios fundamentais do direito positivo.

Para os romanos, os princípios que constituem o direito natural são entre outros: "bonum facieundum", "neminem laedere" e "suum cuique tribuere". Vê-se que os romanos não descuravam das obrigações de caráter positivo ("bonum facieundum"). Poderíamos, aqui, estabelecer um paralelo entre estas disposições e o Evangelho de são Mateus, que admoesta o crente para que não apenas se abstenha da prática do mal, mas faça o bem.

Todo ramo do direito positivo, canônico ou estatal, deve estar embevecido no direito natural. Caso contrário, tratar-se-á de um pseudo-direito, muita vez mefistofélico ou tirânico, antagônico aos lídimos anseios do homem. A natureza humana é o meio pelo qual manifesta-se a imagem de Deus. Entretanto, a concupiscência do pecado maculou esta natureza. Mesmo assim, o homem, mediante o uso da razão, é capaz de perceber os ditames do direito natural, mas só conseguirá agir de acordo com estas prescrições com o auxílio da graça.

O direito canônico é a historicização do direito natural. Não só o direito canônico, qual ordenamento para-estatal, desempenha esta função, mas também o direito estatal propriamente dito, pois, como dissemos acima, numa sociedade civilizada, as leis têm de ser elaboradas com espeque nos princípios de direito natural.

4- Fundamentos eclesiológicos do direito canônico

A- O direito na Igreja

A Igreja é, em essência, um mistério sobrenatural; um mistério de fé. A mente humana é incapaz de perscrutar esse mistério na sua profundidade. Com o auxílio da graça, pode, contudo, lobrigar esta realidade inefável. Para o jurista, ao deparar-se com o direito canônico, cumpre-lhe prover-se de mentalidade jurídica. Isto quer dizer que o canonista não é um experto que discorre sobre o direito do ponto de vista estritamente teológico. Se assim procedesse, estaria a estudar teologia do direito. É, por exemplo, o caso do sociólogo que expende reflexões acerca do direito. Seus estudos são pura sociologia; não podem ser considerados ciência do direito. Esta é cometida ao jurista ou canonista. Portanto, ao debruçar-se sobre o direito no mistério da Igreja, o canonista não pode abandonar seu papel de especialista em direito, para se tornar um teólogo. O direito canônico, como qualquer outro ramo da jurisprudência, rege-se por princípios próprios, peculiares à ciência jurídica, que devem ser respeitados. Daí a relevância da chamada mentalidade jurídica, a qual aludem os doutrinadores.

O direito na Igreja não se explica apenas pelo seu caráter societário ("Ubi societas, ibi ius"), mas pelo compromisso com a justiça evangélica. Com efeito, o adágio latino é absolutamente correto, mas não exaure a "raison d'etre" do direito canônico ou eclesial. Para Viladrich, citado por Joaquin Calvo-Alvarez, o direito na Igreja é um aspecto constitutivo do desígnio trinitário. Deveras, a sociedade que Deus quis criar através da Igreja é o reflexo da própria comunidade das três pessoas da Santíssima Trindade. O canonista, ao trabalhar com os conceitos do direito eclesial, precisa estar atento à esta realidade. A justiça que o direito canônico quer veicular é algo que pertence ao próprio ser divino. Não é uma justiça do tipo distributivo ou comutativo, que surde dos pactos celebrados entre os homens nas sociedades políticas. Acima de tudo, o canonista deve ser uma pessoa de fé. Alguém em perfeita sintonia com o magistério da Igreja, que esteja capacitado para interpretar o direito canônico à luz de princípios magnos, forjados ao largo da caminhada bimilenar da Igreja. Algo que não pode ser nunca olvidado pelo canonista, ao executar a inteligência dos cânones, é a constante referência ao Concílio Vaticano II.

Na verdade, sempre houve, principalmente no grêmio da Igreja católica, certa reserva com relação à lei. Não podemos nos esquecer de que, no Evangelho, Jesus faz acirradas críticas àqueles que sobrepunham a lei à caridade. É de todos conhecida a passagem na qual o Divino Mestre afirma que o sábado fora feito para o homem e não o contrário. No que diz respeito especificamente ao direito canônico, com freqüência vigorou certo preconceito. Desde o Concílio Vaticano II, a situação mudou bastante, pois mesmo os fiéis mais afinados com as transformações sociais começaram a perceber que o direito eclesial, de modo particular o código canônico, é instrumento imprescindível de implementação do ideário renovador do concílio.

O código em vigor está muito mais em sincronia com a caridade e a justiça do Evangelho. Outrossim, não basta ser o código vigente portador de uma série de preceitos avançados em relação ao seu antecessor de 1917. É necessário que o interpretemos à luz de uma saudável eclesiologia, máxime aquela albergada nas atas do Concílio Vaticano II. A lei não será um peso, como o é amiúde, se a aplicarmos segundo princípios superiores. Um deles, o mais relevante, é a caridade. "Ubi caritas, ibi Deus est". Se a caridade, autenticamente evangélica e não assistencialista, permear o espírito daqueles que têm a missão de aplicar a lei, então o direito na Igreja cumprirá seu papel de fazer com que reine vida abundante entre o povo de Deus.

O direito canônico não deixa de ser um braço da ação pastoral e salvífica da Igreja. Assim, interpretado a partir dos postulados acima declinados, o direito eclesial dá sua importantíssima ajuda com vistas na promoção de nossos irmãos, sobretudo dos pobres.

B- Igreja: sacramento de comunhão e corpo místico de Cristo

A Igreja, enquanto povo reunido, é um verdadeiro sacramento. Sacramento, do ponto de vista teológico, é uma verdadeira manifestação do poder e da graça de Deus. Aliás, os teólogos soem explicar os sacramentos, usando a figura de um canal, que liga Deus ao homem. Aprouve a Deus tomar a iniciativa de restabelecer contato com os seres humanos, cujo liame foi rompido em virtude do pecado. O amor divino, sacramental, que Deus dirige ao homem, o alcança na sua dimensão social e histórica. Neste sentido, podemos dizer que o direito canônico é também uma espécie de sacramento, porquanto seu desiderato é veicular o amor divino aos homens, estabelecendo regras jurídicas que viabilizem essa vivência no amor. Diferentemente do direito estatal, o direito canônico pode servir-se da imagem de corpo de Cristo, aplicada à Igreja, sociedade que rege. Não se trata, pois, de uma comunidade qualquer, mas de uma comunidade de bem-aventurados que rumam ao "escaton", à plenitude da vida. O direito canônico, sendo sacramental, leva em conta este aspecto.

Cristo confiou à Igreja a missão de instaurar o reino de Deus. Quem vê a Igreja, vê também o seu Divino Fundador. Como dissemos anteriormente, a Igreja tem sua origem na Trindade e vive na Trindade. O direito canônico de certo modo revela este múnus atribuído à Igreja, porque propicia a visibilidade da mesma Igreja. É como que a estrutura ou esqueleto dessa Igreja prenhe de amor e de graças para distribuir aos homens. O fato de o Filho de Deus ter se feito homem revela remotamente o caráter jurídico da Igreja, pois não há nada humano que não seja concomitantemente jurídico.

A figura do corpo místico denota outrossim este liame entre o visível e o invisível. Como dissemos, o mistério é per se impalpável. No entanto, com a ajuda da graça, pode o homem chegar à compreensão de algumas realidades sobrenaturais ou mesmo ser beneficiado pela Providência Divina. A corporeidade figura-se-nos como a forma institucional de ser da Igreja. Assim, a expressão "corpo místico" quer apresentar o mistério da graça divina, mas também refere a Igreja institucional, presente no meio dos homens. Cumpre ao direito canônico o celso mister de dar compostura e substância aos ditames salvíficos de Cristo Jesus. A Igreja, enquanto corpo místico de Cristo, só poderá ser percebida pelas suas estruturas jurídicas.

 

Edson Luiz Sampel
Mestrando em direito canônico pelo Instituto de Direito Canônico Pe. Dr. Giuseppe Benito Pegoraro, de São Paulo.