I- Introdução
Gostaria de iniciar esta reflexão com um apelo. Espero que juristas de nomeada, acostumados às graves discussões da Jurisprudência no âmbito civil, se debrucem também sobre o Direito Canônico. Infelizmente, estamos à míngua de grandes estudos; ficamos à mercê dos trabalhos estrangeiros, sobretudo castelhanos, mas, muita vez, distantes de nossa realidade latino-americana. O Direito Canônico é o conjunto das regras gerais e positivas, que regulam a vida social no grêmio da Igreja católica.[1] Tendo em vista esse seu caráter axiológico, o Direito assume uma importância incomensurável, principalmente entre os católicos, que procuram viver sob o pálio de valores encontradiços no Evangelho. Sem a presença da norma jurídica, de comando obrigatório, não haveria paz, porque a segurança estaria comprometida. O ideário do Concílio Vaticano II dificilmente se implementaria na prática do dia-a-dia pastoral, vez que apenas o Direito tem o condão de fornecer diretrizes sólidas e claras. Como diz o anexim latino, ubi societas, ibi ius. Até hoje, não se conhece sociedade civilizada que tenha sobrevivido, sem o mínimo de ordenamento jurídico. Os romanos são um exemplo magnífico; seu formidável arcabouço de normas legais foi, indubitavelmente, um dos elementos mais significativos na manutenção do longevo império. Na comunidade eclesial, não poderia ser diferente; o Direito dá as estruturas necessárias para a vivência da caridade; são as leis, principalmente as emanadas do código vigente, que possibilitam uma convivência harmoniosa entre os fiéis, irmanando-os no desiderato de construir o Reino de Deus. Para o Direito Canônico, vale sempre a máxima salus animarum suprema lex est.[2] A salvação das almas tem de ser a suprema lei. Contudo, não se trata de uma dicotomia herética e nefasta entre espírito e corpo. Ao prescrever a salvação das almas como escopo precípuo do Direito, o legislador tem em mente o ser humano na sua totalidade, na sua historicidade, com vistas, é claro, nas realidades póstumas e escatológicas, em que a realização será plenificada.

II - O leigo no código vigente
Não seria nem convinhável expender pormenores sobre o status laical sob a égide do código revogado, de 1917. Naquele diploma legal, o leigo era simplesmente um agente receptor. Cabia-lhe unicamente o mister de obedecer; frisava-se a diferença entre a Igreja docente e a Igreja discente. Com o advento do atual código, promulgado por João Paulo II em 1983, vê-se aflorar uma autêntica teologia laical, arrimada no próprio Evangelho. O leigo, que desde os albores da Igreja, desempenhou papel proeminente, reassume sua função; passa a ser chamado de protagonista do Evangelho, isto é, aquele que vai à frente, o fiel responsável pela transformação da realidade social, permeando-a de valores cristãos.
O código em vigor visa a pôr em prática os princípios e diretrizes máximas do Concílio Vaticano II. Aliás, tamanha é a relevância do Direito Canônico, que, mal encetados os trabalhos de instalação do Concílio, surge, concomitantemente, a preocupação com a elaboração de um novo código. Como já pude dizer algures, o Concílio decerto seria letra morta, não fosse o código canônico a dar-lhe pujança e a viabilizar-lhe a implantação. As mudanças todas propostas pelo Concílio, o chamado aggiornamento, foram reguladas pelo código vigente. Para empregar uma imagem comum ao Direito Estatal, poderíamos asseverar que os documentos do Concílio são uma espécie de Constituição, de Carta Política na Igreja, enquanto o código regula a aplicação desses valores máximos, albergados no Concílio.
Embora a visão do leigo, agasalhada pelo código em vigor, tenha evoluído bastante, há, no meu modo de ver, um entrave ingente, principalmente para o fiel não membro da hierarquia: o código está vazado na língua latina. Pergunto: quem sabe latim hoje em dia? Quiçá os canonistas mais esmerados e um punhado de padres idosos. E não me venham com o argumento de que a tradução referendada pela CNBB tem o mesmo valor que o texto latino. Isto não é verdade. A própria Conferência adverte-nos a propósito deste equívoco na sua Apresentação à Edição Brasileira.[3] Acredito que num futuro não muito distante, o código canônico estará redigido em espanhol ou inglês, que são as línguas modernas internacionais da atualidade. Isto facilitaria sobremaneira a compreensão da lei, bem como o acesso do leigo aos direitos que ela veicula. Não é o caso do código canônico em vigor - pois o latim foi utilizado dada a sua excelência lingüística e por ser uma espécie de língua oficial da Igreja - mas, não podemos nos esquecer da Magna Carta, outorgada por João Sem Terra, da Grã-Bretanha, sob a injunção dos barões. Malgrado portasse direitos fundamentais, como o habeas corpus e o Júri, a redação em latim fê-la inaplicável por centúrias, absolutamente inacessível às massas populares.[4] Assim sendo, sou da opinião de que a cidadania laical plena dependerá da elaboração de leis, redigidas em algum idioma moderno, mais próximo dos padrões culturais hodiernos.

III- Regulação do múnus dos leigos
O código trata dos fiéis, leigos e clérigos, no Livro II, sob a rubrica De Populo Dei. Os cânones 204 a 223 discorrem sobre direitos e deveres comuns a leigos e membros da hierarquia. Traça um pano de fundo para ulterior regulação da vida laical propriamente dita (Título II) e do ministério clerical (Título III). Neste artigo, deter-nos-emos na parte do código que rege especificamente o múnus do leigo na Igreja.
O cânon 224 possui profundas raízes bíblicas e conciliares. Com efeito, introduz o leigo na vida eclesial, afirmando que além dos direitos e deveres oriundos da própria condição ontológica de batizado, que representa uma igualdade fundamental[5], o fiel leigo possui determinadas prerrogativas (expressas em direitos e deveres), que são minudentemente explicitadas pela lei. Ora, sabe-se que é veemente injustiça tratar de forma igual as pessoas diferentes. Este é um princípio de Direito Natural que está expresso em todas as Constituições contemporâneas. Com espeque neste discrímen necessário, o legislador canônico faz a distinção entre clérigo e leigo, não nos moldes da condenável acepção de pessoas, proscrita por são Tiago, mas numa perspectiva de respeitar as diferenças e idiossincrasias de cada uma das categorias de christifidelis.
O sacramento do batismo, como dissemos acima, é um ponto nivelador fundamental entre todos os fiéis. O clérigo não é mais santo que o leigo, nem vice-versa. Cada um tem uma função clara a desempenhar no grêmio da Igreja, sempre tendo em mira a salvação das almas, que se traduz na construção de uma sociedade justa e fraterna, em que haja vida abundante para todas as pessoas.[6] Embasado nos sacramentos do batismo e da confirmação, os leigos estão destinados ao apostolado (ad apostolatum a Deo per baptismum et confirmationem, cânon 225). Vê-se que é da essência do ser cristão a tarefa de dedicar-se ao apostolado, vale dizer, à proclamação da Boa Nova de Jesus. É óbvio que o legislador não restringe o chamado apostolado a atividades meramente discursivas, mas compele o fiel leigo a que sua própria vida se transforme numa autêntica manifestação do Evangelho. Entretanto, a lei deixa claro que a obrigação de evangelizar, por parte do leigo, é mais premente nas circunstâncias em que os pastores não puderem estar presentes: in quibus nonnisi per ipsos Evangelium audire et Christum cognoscere homines possunt. Cuida-se, na realidade, de um direito-dever, porquanto, o leigo tem, acima de tudo, o privilégio de ser arauto do Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo. Enquanto membro da Igreja, fala em nome da instituição, desde que se atenha à ortodoxia e não comunique uma opinião sua, particular, como tendo recebido o beneplácito eclesiástico.
O parágrafo 2, do cânon 225, é mais contundente no que tange à missão peculiar do leigo. Di-lo expressamente, em vernáculo: "Têm (os leigos) o dever especial, cada um segundo a própria condição, de animar e aperfeiçoar, com o espírito evangélico, a ordem das realidades temporais, e, assim, dar testemunho de Cristo, especialmente na gestão dessas realidades e no exercício das atividades seculares." O cânon 210 enuncia o direito-dever de evangelizar, reportando-se a clérigos e leigos. Aqui, o legislador houve por bem sublinhar a especificidade do mister laical, quer em razão da aludida peculiaridade, quer em virtude das limitações históricas infligidas aos leigos.[7] Note-se que o escopo da atividade do leigo, no que toca à evangelização propriamente dita, não se limita à reles exposição verbal da Boa Nova, como, puerilmente crêem alguns fiéis, leigos e clérigos. O que se espera do leigo é que ele se comporte sob o influxo dos valores do Evangelho. Nesse diapasão, é mais coerente com sua vocação cristã ser um político honesto ou um pai de família correto do que ficar a palrar coisas desconexas sobre a doutrina, às vezes chegando às raiais de um fundamentalismo infecundo. O cânon 226 acentua a natureza da missão do leigo, roborando as minhas observações. É, com efeito, na família, no estado dito matrimonial, que o leigo disporá de um campo enorme para o seu lídimo apostolado, principalmente nos dias de hoje, em que a instituição da família é amiúde aviltada pelos meios de comunicação em massa. Cabe ao leigo dar o testemunho, levando uma vida digna e, sobretudo, sabendo conduzir seu matrimônio na ótica da opção preferencial pelos pobres. Ninguém pode se esquivar da observância deste princípio fundamental. A opção preferencial pelos pobres precisa outrossim alumiar a interpretação das leis canônicas. Trata-se, pois, de um valor máximo, que não pode jamais ser olvidado na hermenêutica jurídica, sob pena de trairmos a essência do Evangelho.
É interessante notar como as pessoas estão vivendo o sacramento do matrimônio nos tempos atuais. Os tribunais eclesiásticos, espalhados por todo o país, estão abarrotados de ações de nulidade de matrimônio. Deveras, há bastantes casos, quiçá a maioria, em que efetivamente são proferidas sentenças de nulidade do sacramento. Neste ponto, é importante salientar que a responsabilidade pelo fracasso no casamento não é só dos leigos; talvez caiba-lhes a maior parcela de responsabilidade. Todavia, os pastores são igualmente malsucedidos na tarefa de ajudar na preparação para a vivência do matrimônio cristão. A sociedade erotizada, máxime através dos chamados Mass Media, inocula a idéia do descartável. Tudo pode ser trocado, até mesmo os parceiros conjugais. Infelizmente, os famigerados cursos de noivos são absolutamente insuficientes para fazer com que as pessoas se conscientizem da importância inefável do matrimônio-sacramento. Mais: por si sós, não propiciam nos nubentes a necessária maturidade, requerida para a validade do sacramento. Em razão disso, muitíssimos casamentos são declarados nulos por grave falta de discrição de juízo para a assunção dos deveres inerentes à sociedade conjugal; é a célebre imaturidade. Há situações, realmente, em que a imaturidade é tão grande, que macula o sacramento de forma irreversível.
O parágrafo 2 do cânon 226 alude ao dever dos pais de educar os filhos. Para levar a cabo esta sublime missão, é preciso que os responsáveis procurem instituições que primem por uma educação cristã. Aqui, novamente, cumpre frisar que não se cuida de carolice, mas de formadores que comuniquem os valores evangélicos, como a justiça, a caridade, a solidariedade para com todos, especialmente para com os pobres, pelos quais Jesus fez uma opção clara, porém não exclusiva, nem excludente.
Uma grande novidade da atual legislação, claramente influenciada pelo Concílio Vaticano II, bem como pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, diz respeito à liberdade de expressão. Indubitavelmente, o leigo não é mais um sujeito passivo, pronto para ouvir e obedecer. Ao lume do código, o leigo pode e deve expressar suas opiniões, inclusive no que se refere aos temas estritamente eclesiásticos, vez que o leigo também é membro da Igreja, povo de Deus. A única cautela que o cânon 227 solicita ao leigo é que se abstenha de expor como doutrina da Igreja um posicionamento discutível dele próprio: caventes tamen ne in quaestionibus opiniabilibus propriam sententiam uti doctrinam Ecclesiae proponant. Assim, o leigo participa, em certa medida, do governo da Igreja. Na sociedade eclesial, o poder é sempre serviço. Desse modo deveria ser também na sociedade civil. Desta feita, o legislador admoesta o leigo, maiormente aquele bem preparado, isto é, capacitado do ponto de vista humano e científico, a que coadjuve os pastores na condução da barca de Pedro.
A notável mudança tange ao respeito que se outorga à pessoa do leigo. Agora, ele pode falar enquanto membro da Igreja, manifestando sua opinião pessoal, podendo até mesmo divergir da posição da hierarquia, naquilo que não esteja relacionado à matéria de fé católica. Antanho, nós outros, os leigos, éramos relegados a segundo plano. Pairava sobre nós uma certa captis diminutio. O novo código trouxe de volta a dignidade laical, tornando o leigo uma pessoa altissonante no seio do Povo de Deus. O cânon 228 abre as portas para que o leigo participe do governo da Igreja. Segundo o Direito Canônico, o múnus de governar a Igreja compete principalmente aos membros da hierarquia, sobretudo aos bispos em comunhão com o sucessor de são Pedro. Sem embargo, o código dá ensanchas à participação mais efetiva do leigo. O leigo pode, por exemplo, ser juiz em tribunal eclesiástico, ser membro de conselho, assumir a função de testemunha qualificada do matrimônio, entre outras possiblidades. Reza o aludido cânon: laici qui idonei reperiantur, sunt habiles ut a sacris Pastoribus ad illa officia ecclesiastica et munera assumantur.
Uma outra questão assaz importante é trazida à tona pelo novo código. Atribui-se ao leigo o direito-dever de adquirir conhecimento da doutrina católica (obligatione tenentur et iure gaudent acquirendi eiusdem doctrinae cognitionem, cânon 229, parágrafo 1). Mais. Ele está autorizado inclusive a ser docente em instituições eclesiásticas e funcionar como perito em temas teológicos. Neste momento, não devemos nos esquecer de que no passado, certas instituições eclesiásticas de ensino superior, assim no Brasil como no mundo, impediram o leigo de ter acesso ao ensino requintado, de primeira linha, igual ao ministrado aos clérigos no período de sua formação. Para camuflar a intenção velada de monopolizar o conhecimento, criou-se a noção equivocada do curso de leigos, em que se fornecia um estudo de segunda categoria, subtraindo do leigo a possibilidade do acesso à ciência teológica. Faz-se mister louvar a atuação da Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, da Arquidiocese de São Paulo, que nunca fez diferença entre clérigos e leigos, aceitando estes últimos nos seus bancos escolares, concedendo-lhes o mesmo nível de ensino que o levado aos seminaristas, outorgando-lhes, igualmente, titulação eclesiástica e, recentemente, civil. Sabemos, contudo, que há escolas que restringem a assistência do leigo. Este procedimento atrita frontalmente com o dispositivo legal. Vejamos a dicção legal. Em português: "Gozam também (os leigos) do direito de adquirir das ciências sagradas o conhecimento mais completo que é apresentado nas universidades e faculdades eclesiásticas ou nos institutos de ciências religiosas, aí freqüentando aulas e obtendo graus acadêmicos." (cânon 229, parágrafo 2, grifos nossos). O parágrafo 3 completa o rol de atribuições do leigo nesta seara: pode ensinar as ciências sagradas: ad mandatum docendi scientias sacras a legitima auctoritate ecclesiastica recipiendum. Esta é, indubitavelmente, uma evolução significativa, notável relativamente ao reconhecimento da dignidade do status laical.
In clari cessat interpretatio, diziam os romanos, ou seja, se a lei é meridianamente clara, como o cânon 229, não se pode admitir uma exegese que seja restritiva. No caso em discussão, seria puro autoritarismo ou depotismo negar ao leigo a oportunidade de freqüentar uma instituição eclesiástica de nível superior. Na verdade, o legislador augura que a teologia não fique jungida aos meios clericais, mas que o laicato tenha total possibilidade de conhecer a doutrina a fundo. Doravante, o leigo, se quiser, não tem de permanecer restrito à catequese da primeira comunhão. Pode e deve ir além. Geralmente, seus conhecimentos, adquiridos na área profana (médico, advogado, psicólogo, operário etc.), servem como complemento à visão estritamente teológica. Nesse aspecto, ousamos asseverar que o leigo goza de uma certa vantagem.
Apesar dos inquestionáveis avanços, a mulher, na prática, ainda é objeto de tratamento um tanto quanto discriminatório. A legislação progrediu, dando maior espaço ao sexo feminino; hoje em dia, a mulher pode até mesmo participar do munus regendi, sendo, por exemplo, juíza de tribunal eclesiástico. Em outros países, a situação ainda é pior. Recentemente, em viagem à Argentina, senti quão estupefatos ficavam meus interlocutores, quando dizia-lhes que na minha diocese há mulheres que exercem o cargo de juíza eclesiástica. Naquele país, nem o leigo varão está autorizado a integrar o colégio de juízes. Apesar de portarem o título de doutor em Direito Canônico, só estão habilitados a desempenhar a função de advogado. Tudo em contraste com a lei. O código não faz acepção de pessoas, nem de sexo, em muitos assuntos. Contudo, são eclesiásticos e até mesmo leigos clericalizados (infantilizados), que segregam outros leigos. É preciso que os leigos adquiram plena cidadania e reivindiquem seus direitos, sem respeito humano. A lei assegura-lhes o livre exercício dos direitos. O Direito Eclesial, mormente o código, carece ser cumprido por todos os integrantes da Igreja, hierarquia e laicato. Portanto, ninguém está fora do alcance da lei; ninguém está acima da lei.
O cânon 230 regulamenta o exercício dos ministérios de leitor e acólito. Limita as aludidas funções litúrgicas aos varões (viri laici). O legislador, infelizmente, não incluiu a mulher. Se bem que estamos diante de um avanço, vez que o leigo está admitido a atuar oficialmente na liturgia. O parágrafo 2 do aludido cânon não faz distinção entre homens e mulheres; refere-se genericamente aos leigos (laici), sem o epíteto "varões". Afirma que por encargo temporal, os leigos, de ambos os sexos, podem desempenhar a função de leitor, comentador, cantor e outras tarefas, na forma da lei (ad normam iuris). Aqui, surge a excepcional oportunidade de as Igrejas particulares legislarem a propósito do tema, como, aliás, freqüentemente ocorre. É oportuno lembrarmos que o Direito Canônico não são somente as normas prescritas pelo código, em latim. Toda lei, emanada de uma diocese, que não conflite com as disposições do código, é canônica. O próprio código canônico, expoente maior do Direito Eclesial, muitas vezes remete a autoridade eclesiástica ao chamado Direito Particular, oriundo principalmente das dioceses. Referentemente à atuação laical, vemos que a prática em muitas dioceses é alvissareira, conferindo ao leigo importantes missões, colocando-o na linha de frente, permitindo que ele influa nas decisões mais prementes da Igreja.
Os leigos, destinados permanentemente a um tipo de serviço especial na Igreja, geralmente com dedicação exclusiva, fazem jus à remuneração condigna (ius habent ad honestam remunerationem, cânon 231, parágrafo 2). A regra é o trabalho voluntário, sem a contraprestação pecuniária, como frisa o cânon 230, parágrafo 1: ius non confert ad sustentationem remunerationemve ab Ecclesia praestandam (não lhes dá o direito ao sustento ou à remuneração por parte da Igreja). O preceito que manda remunerar é um corolário do Direito Natural. Ora, quem labuta sempre tem direito ao salário. Interessante notar que o cânon 231 chega a minúcias, como previdência, seguros sociais e assistência à saúde (praevidentiae et securitati sociali et assistentiae sanitariae). Outrossim, remete a autoridade eclesiástica, destinatária imediata da norma, às disposições do Direito Estatal. Assim sendo, o leigo que se encontrar nessas condições de trabalho tem todas as benesses contempladas pelo Direito do Trabalho, entre nós, pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que rege a matéria.

IV - Conclusão
Penso que o código vigente, como pudemos ver no decorrer da sucinta exegese acima, realmente trouxe de volta a autêntica dignidade do leigo, enfatizando sua importância na Igreja. Nada obstante, cabe ao próprio leigo e também ao clérigo, envidar esforços para que essas disposições legais surtam efeitos na prática. Hoje em dia, fala-se muito em cidadania, consciência dos direitos. Todavia, parece-me que na sociedade eclesial, o leigo, que também é cidadão, ainda não adquiriu plena consciência de seus direitos e obrigações. Ele tem de dar seu contributo na condução da Igreja. Não se trata de estar em constante conflito com a hierarquia; muito pelo contrário, se isto ocorrer, certamente não estamos no caminho certo. Na Igreja, a caridade deve pervadir todos os relacionamentos. Na verdade, os pastores esperam do leigo uma atuação mais positiva; geralmente os pastores estimulam o leigo a participar, ressaltam a dignidade e protagonismo da vocação laical.
Com certeza, não haverá cidadania laical, nem presbiteral, enquanto o Direito Canônico for um ilustre desconhecido. Se nós, cidadãos, não procurássemos nos informar a respeito das normas contidas no Código de Defesa do Consumidor, nunca seríamos capazes de viver como cidadãos maduros, com os direitos respeitados. Da mesma forma acontece na Igreja. Se os leigos não tiverem a oportunidade de conhecer o Direito Canônico, máxime as regras que lhes tocam mais de perto, ser-lhes-á extremamente difícil assumirem sua vocação. Não serão protagonistas coisa nenhuma. Os ditames do Concílio, que colocam o leigo na cúspide da figura da pirâmide (povo de Deus) restaram inócuos, sem reflexo na quotidiano.
De qualquer modo, o cenário que se descortina é altamente positivo. O código é relativamente recente; não houve tempo para total maturação. Muitos estão ainda sob o influxo da inevitável nostalgia do código ab-rogado. Com o passar do tempo e o trabalho diuturno dos leigos, mormente dos especialistas em Direito, a situação deve mudar. Trata-se, verdadeiramente, de uma radical transformação de perspectiva; do Concílio de Trento, espelhado pelo código de 1917, passa-se ao magnífico Concílio Vaticano II, retratado pelo atual diploma; o Concílio dos direitos humanos, da igualdade fundamental, da doutrina social.
Salus animarum suprema lex est: a salvação das almas é a suprema lei. O Direito dos Leigos, o estatuto jurídico laical, está a serviço do cumprimento deste excelso objetivo. Só o leigo, cônscio dos seus direitos inalienáveis, está capacitado a ser um parceiro dos pastores na sublime missão que a Igreja tem a desempenhar no limiar do terceiro milênio.

Edson Luiz Sampel
Doutorando em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Católica de Buenos Aires, Argentina; juiz do Tribunal Eclesiástico de São Paulo; autor dos seguintes livros: "Quando é Possível Decretar a Nulidade de um Matrimônio", Paulus, 1998, 2.ª edição e "Introdução ao Direito Canônico", LTR, 2001.

 

 

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[1] SAMPEL, Edson Luiz, Introdução ao Direito Canônico, São Paulo: LTR, 2001, página 15.

[2] Cânon 1752.

[3] "Para a exata compreensão desta edição brasileira, é necessário entender as seguintes advertências:

1.ª Só o texto latino do código tem valor oficial." (Apresentação à Edição Brasileira, Dom Ivo L,

Brasília, 25 de abril de 1983, grifos nossos).

[4] "A redação original do artigo 39 da Magna Carta em latim, segundo Celso Albuquerque Mello, teve o

objetivo deliberado de torna-lo inutilizável pela maioria da população que o ignoraria: ‘A Magna Carta

nada mais foi do que um dos inúmeros pactos existentes, no período medieval, entre a nobreza e os reis. Se no futuro ela veio a ser um dos documentos invocados pelo liberalismo, na sua origem nada mais era do que instrumento a beneficiar ínfima parcela da população e o seu texto ficou em latim por mais de duzentos anos, a fim de que o grosso da população não pudesse invoca-la em sua defesa.'" (O Processo Tributário, 3.ª ed. , Editora Revista dos Tribunais, Cleide Previtali Cais).

[5] Cânon 96.

[6] Jo 10, 10.

[7] HORTAL, Pe. Jesus, Comentário ao Código de Direito Canônico.