Sou um arcebispo católico, com 80 anos de idade e completando 52 de vida sacerdotal, tempo que me permitiu conhecer um pouco da alma humana.
No início desta “quarentena”, enviei umas poucas reflexões a alguns amigos. Recentemente, um sacerdote com seus 17 anos de vida sacerdotal sugeriu-me que voltasse ao tema, tentando ajudar as pessoas a vivenciar a novidade dos esquemas de vida e de convivência familiar. Tentarei evitar, neste texto, os lugares comuns do que se tem falado ou escrito.
A modalidade de vida a que estávamos acostumados incidia, preferencialmente, no fazer e no acontecer: o exercício da própria profissão, dividindo o tempo com as atividades domésticas, reservando os sábados e domingos (Domingo não é “fim de semana”!) para a convivência social: atos religiosos, clubes, esportes, festas, aniversários e visitas. Lembro-me de um professor, em Roma, que, em 1974, já nos falava da “neurose do domingo”: própria das pessoas que não sabem ocupar o próprio tempo fora da rotina semanal.
A quarentena quebrou tudo isso. Nem todas as famílias têm um espaço suficiente na própria casa para diversificar a valorização do uso do tempo e do saboreá-lo. Nem todas as crianças são calmas e, mesmo quando o são, necessitam de espaço, de movimento e de atividade. As menores, quando assentadas nas cadeiras, balançam suas perninhas... Pode faltar o espaço necessário para o sossego, para a leitura de um livro ou mesmo para ter um tempo de reflexão e de meditação.
Recentemente, uma pessoa, que vejo como a personificação ambulante da calma, disse-me, ao final de um dia de trabalho, que estava se sentindo estressada, queixa que foi acolhida com risos pelos presentes.
Essa situação da quarentena pode gerar duas reações opostas nos indivíduos:
- sentir-se a vítima que carrega, quase sozinha, o peso da família, da convivência e dos problemas que surgem; o pensamento de que “sou esquecido(a) ” - “ninguém se importa comigo” – o “tudo eu”! Ou: “ se eu não fizer, ninguém faz!” Tal maneira de pensar pode levar a pessoa à depressão, com suas funestas consequências; ou
- adotar um comportamento agressivo, jogando nos outros a culpa não só de tudo que acontece de desagradável em casa, como também da limitação da própria capacidade de aceitar, de acolher, de administrar as limitações e os defeitos dos demais na convivência do dia a dia.
As duas atitudes têm uma mesma fonte: o individualismo existente no grupo familiar: cada um só pensa em si.
Como vivenciar esta quarentena que pode se prolongar? Quais valores ela pode trazer para nós?
Além do que já escrevi, anteriormente, e do que já foi falado ou escrito, trago algumas sugestões, sem a pretensão de ser exaustivo.
* Gail Sheehy, em seu livro “Passagens”, ensina-nos que não resolvemos nossos problemas mudando o mundo fora de nós, mas mudando a nós mesmo, conformando-nos ao mundo em que estamos.
* Cuidar da própria apresentação pessoal. Não devemos nos arrumar apenas quando saímos à rua, mas sempre. Vestir-se bem não significa roupas caras, mas saber combinar a própria roupa. Minha irmã dizia: “- Não existe mulher feia, existe mulher que não se cuida”. Um pouco de maquiagem dentro de casa faz bem a todos e sobretudo à própria pessoa que se maquia. Para nós homens, fazer a barba diariamente ou conforme nosso costume anterior e cuidar-nos, também! A vaidade no cuidado pessoal faz bem a todos!
* Há uma dimensão positiva nesta situação que vivemos: ter tempo para si próprio. Com muita frequência falamos em “correria” e não temos tempo para nós mesmos: colocar nossas coisas em ordem: papéis, roupas, gavetas...
* Nesta mesma linha: procurar descobrir e valorizar os dons que cada um recebeu de Deus e que, pelas circunstâncias da vida, ficaram esquecidos ou sem oportunidades de se fazerem presentes: aprender a tocar um instrumento musical, a pintar, a compor poesias, a escrever contos. Conheço uma professora, já de idade, humilde, no Sul de Minas, que publicou, recentemente, um pequeno livro com suas poesias. Uma amiga, em São Paulo, quando seu único filho se casou, dedicou-se à música e à pintura, coisas que nunca fizera antes. Seus quadros foram premiados em várias exposições em São Paulo, Bahia e outros Estados. Seu marido tinha condições e, com um pequeno teclado, ela dedicou-se também à música.
* Muitas vezes falta-nos a oportunidade para descobrir dons e qualidades que Deus nos deu! São Henry Newman escreveu: “tenho convicção de que Deus me criou para cumprir uma missão especial”. Aceite que você é uma pessoa sonhada por Deus e que Ele lhe deu uma missão especial! Descubra qual!
* Admiro um garoto pobre, de quinze anos, que vive na área rural. Nestes dias sem aulas, com seu celular, estuda como criar coisas. Já fez uma tesoura eletrônica que corta papel, um carrinho miniatura que se movimenta sozinho (as rodas são tampinhas de garrafa pet), um outro carrinho teleguiado, um aparelhinho de solda quente, etc.
* Li um livro, que muito me agradou, de outra psicóloga americana: Karol Jackowski, “Dez coisas divertidas a fazer antes de morrer”, (depois de lê-lo, comprei dez exemplares para presentear amigos). Claro que também eu, apesar dos 80 anos, espero viver mais uns aninhos e superar o vírus Covid 19. Vale, no entanto, a pergunta: “- Quais as coisas que gostaria de fazer antes de morrer?”
O “Corona vírus” pode me ajudar a conhecer melhor as pessoas que amo, a conhecer melhor a mim mesmo e a descobrir qual seria o projeto que Deus traçou para mim ao me criar! Mas, sobretudo, neste tempo em que nos resguardamos para nos proteger, é muito importante ser alegre, cultivar a alegria, ver as coisas e os fatos pelo lado bom e crescer na gentileza para com as pessoas com quem convivemos.
Um abraço:
Dom João Bosco Óliver de Faria
Arcebispo Emérito de Diamantina - MG