por Pe. Gervásio Fernandes de Queiroga

Por ocasião das celebrações jubilares da Sociedade Brasileira de Canonistas (SBC), entre 2010 (vigésimo quinto encontro dos canonistas) e 2011 (jubileu de prata da SBC, fundada que foi a 15 de julho de 1986), o Presidente desta pede-nos um relato histórico do surgimento da SBC, já que nos coube a graça e honra de, sendo então consultor jurídico-canônico da CNBB, pensá-la e promover-lhe a fundação, correspondendo assim certamente aos anseios de muitos.

Longe de pretender escrever história, apenas desejamos colaborar, trazendo pequena contribuição para se conservar a memória dos inícios da SBC. Outros que viveram aqueles momentos inaugurais, como sócios fundadores, bem poderiam aproveitar a oportunidade e documentar também sua efetiva participação.

Quase casual, em 1982-83, e logo em seguida permanente (1984-2003), com as lamentadas mortes de Dom João Batista Przyklenk (Bispo de Januária - MG) e de Mons. Affonso Hammes, consultores jurídicos, canônico e civil, de grande prestígio e não poucos méritos na CNBB, nossa presença e atuação nesta coincide com o tempo da promulgação, tradução, complementação e aplicação do novo código canônico. Isto suscitou, pouco a pouco, crescente interesse pela ciência e prática canônicas, por causa das novas estruturas eclesiais, da revitalização ou criação de tribunais eclesiásticos, da revisão ou elaboração de estatutos e regimentos, da multiplicação de cursos intensivos de direito canônico, determinando a consequente valorização daqueles canonistas que tinham superado vivos a fase de hibernação jurídica na Igreja, não só do Brasil.

Como a geração e gestação do ser vivo passam despercebidos ou quase, assim o pensar e promover os inícios de uma associação de canonistas. De fato, a partir das reuniões anuais do pessoal atuante nos tribunais eclesiásticos, que então a consultoria jurídico-canônica da CNBB, por desejo expresso da Presidência desta, estava procurando garantir que acontecesse e tendo o exemplo dos teólogos que fundaram a SOTER em 1985, foi-nos fácil intuir a necessidade da associação dos canonistas e trabalhar por sua realização. A viabilidade, contudo, era dependente da sensibilidade dos canonistas de então, poucos em número, bastante atarefados, desmerecidos por muitos, quando não ridicularizados e olhados como seres fósseis no continente eclesial.

Um vislumbre de esperança na valorização deles no organismo eclesial era trazido pela promulgação e entrada em vigor do novo código de direito canônico, em 1983, e pelo apoio lúcido e estimulante de Dom Ivo Lorscheiter e de Dom Luciano Mendes de Almeida, respectivamente Presidente e Secretário Geral da CNBB, às iniciativas referentes à organização dos tribunais, à complementação da legislação canônica, ao consequente aproveitamento dos que tinham títulos acadêmicos na área do direito canônico, ou que, por necessidade das Igrejas locais, estivessem empenhados em atividades mais ligadas à área jurídico-canônica.

Vale lembrar também os que com suas atividades e escritos mantinham vivo o ideal de serviço à Justiça na Igreja e os quase heróicos juízes e servidores dos tribunais eclesiásticos da época. Eles foram de incentivo direto ou indireto ao surgimento da SBC. Merece destacar-se ainda a coragem da Arquidiocese do Rio de Janeiro, com seu tribunal de alta qualidade e seus bons canonistas, ao iniciar, então, o Instituto Superior de Direito Canônico, com o apoio determinante do Cardeal Eugênio Sales e de seu Auxiliar Dom Karl Romer. Ligada ao Instituto, surgia também a revista Direito e Pastoral.

Na mesma época, por todo o Brasil, aconteceram cursos intensivos sobre o novo Código de Direito Canônico. Pessoalmente, sozinho ou colaborando com D. José Cardoso Sobrinho e outros canonistas, demos então até a fundação da SBC, cerca de trinta cursos a bispos, padres, religiosos, seminaristas e leigos, em nível regional ou diocesano, a começar de Manaus, em julho de 1983, em quase todos os Regionais da CNBB.

Não foi difícil perceber, portanto, a oportunidade de dar início a uma associação que congregasse as pessoas e esforços dispersos no imenso território brasileiro, para estimular-lhes as atividades, renovar-lhes a ciência e o entusiasmo, resgatar-lhes a dignidade e autoestima, no serviço eclesial que prestavam. Pesquisando o arquivo da CNBB desse período, é possível discernir os principais passos dados, até chegar à concretização da SBC, com o apoio imprescindível da CNBB e dos canonistas da época.

Passos iniciais importantes foram os encontros de “Juízes Presidentes de Tribunais Eclesiásticos Regionais”, depois ampliados a todos os que trabalham nos tribunais da Igreja no Brasil. A iniciativa dessas reuniões anuais, a partir de 1984, coube à CNBB, graças à estima que Dom Ivo Lorscheiter, seu Presidente então, tinha pela administração da Justiça na Igreja, empenhada que era esta também na promoção da justiça social. No começo, é D. Ivo que convoca e dirige e é a CNBB que organiza e hospeda os participantes em sua sede em Brasília. Não é casual que os encontros dos canonistas, desde o da fundação da SBC, se dão sempre em conexão com as reuniões anuais do pessoal dos tribunais eclesiásticos.

Já em 1984, escrevendo ao Padre Jesus Hortal, nos referíamos à desejada promoção, em 1985, de um encontro destinado especificamente aos canonistas, em conexão de tempo com a reunião dos juízes eclesiásticos. Tendo sido muito pequeno o número de adesões, tal encontro foi transferido para 1986.

Esse encontro nacional de canonistas, incluído como projeto do 8º Plano Bienal da CNBB, de fato felizmente aconteceu, em julho daquele ano, imediatamente antes da terceira reunião nacional de juízes eclesiásticos.

É marcante a importância histórica desse primeiro encontro de canonistas, por dar início a uma série não interrompida de reuniões anuais, que chega agora em 2010 à vigésima quinta realização. Isto mostra sua oportunidade, respondendo a uma necessidade sempre sentida. Mais marcante ainda é, porque nele se deu o nascimento da nossa Sociedade Brasileira de Canonistas (SBC).

Alegra-nos termos tido confiança no idealismo e capacidade de organização solidária dos canonistas do Brasil, brasileiros ou não, num tempo em que a estima pelo direito eclesial e seus cultores era tão baixa. Deus abençoou o esforço de todos os que investiram nessa proposta aparentemente imprudente e fora de época.

Para perenizar a memória desses dois acontecimentos, cujo jubileu de prata estamos prestes a comemorar, penso ser bom transcrever – sempre em itálico - alguns informes sobre o “1º Encontro Nacional dos Canonistas do Brasil”, colhidos do Relatório arquivado na CNBB, do qual uma síntese foi apresentada ao Conselho Permanente de agosto de 1986.

Eis alguns tópicos, em destaque:

O 1º Encontro Nacional dos Canonistas do Brasil teve início às 19h e 30min do dia 13 de julho de 1986, em Brasília – DF, no Instituto Social de Educação e Assistência de Brasília (Irmãs de Jesus Crucificado) – QI 5, Chácara 67, Lago Sul. O número total de participantes chegou a 34. Presente também, representando a Presidência da CNBB, promotora do evento, Dom David Picão – Bispo de Santos-SP, da Comissão Episcopal de Pastoral (CEP) da CNBB. A coordenação esteve a cargo do Consultor Jurídico da CNBB, encarregado da realização deste 1º Encontro, Pe. Gervásio Fernandes de Queiroga.

Dia 13 de julho:

Na reunião inicial, com a presença de Dom David Picão, foi discutida e aceita a pauta proposta no convite do Encontro, a saber:

A estes se acrescentaram os seguintes assuntos a serem tratados nas reuniões da noite:

Sobre os participantes o Relatório tem a seguinte informação, em sua última página:

PARTICIPANTES:

Total de 34, sendo um diácono permanente e duas religiosas. Havia 13 Estados representados: São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Paraná, Bahia, Paraíba, Goiás, Piauí, Amazonas, Espírito Santo, Acre, além do Distrito Federal.

O Relatório não contabiliza, pois, Dom David Picão, que, no entanto, consta na lista de endereços dos participantes, elevando-lhes o número a 35. Supõe também que, fora o diácono permanente e as duas religiosas, todos os demais presentes eram presbíteros.

A manhã do dia 15 de julho foi especialmente consagrada à fundação da SBC. O dia 14 de julho e a tarde do dia 15 foram dedicados aos demais temas. Transcrevemos alguns tópicos do citado Relatório sobre a manhã da fundação da SBC.

Dia 15 de julho:

Após a celebração da Liturgia das Horas, começou o trabalho sobre a possibilidade de associação dos canonistas do Brasil...

Após exaustivo debate, resolveu-se votar as seguintes propostas, todas aprovadas como seguem:

  1. Considera-se fundada HOJE, dia 15 de julho de 1986, a Associação dos Canonistas do Brasil. Aprovada por unanimidade (34 votos).
  2. Os presentes que assinarem a Ata de Fundação serão membros fundadores, sem maiores direitos. Aprovada por unanimidade (34 votos).
  3. Aceitam-se globalmente as propostas de objetivos da Associação e critérios de admissão dos membros, indicadas pelo plenário, deixando-se determinações ulteriores para os Estatutos. Aprovada, por 33 votos, 01 abstenção.

Objetivos apresentados em plenário:

Critérios para admissão de membros:

Escolha do nome da Associação:

foram sugeridos os seguintes nomes:

Após muita ponderação e diversas votações sem êxito, foi escolhida, por 18 votos favoráveis, maioria absoluta, a seguinte designação: SOCIEDADE BRASILEIRA DE CANONISTAS (SBC).

Foi uma maioria realmente exígua, apenas um voto a mais da metade de 34 participantes ao encontro. Levou-se muito a sério a designação da associação, o que demonstra o valor que se estava dando à SBC nascente.

Escolheu-se também uma diretoria provisória, sendo eleitos, após uma votação prévia, os Padres Jesus Hortal e Antônio da Silva Pereira (em primeiro escrutínio) e a Irmã Mercedes Darós (em terceiro), “com a função de elaborar o projeto de Estatuto e preparar a próxima Assembléia da Sociedade”, marcada para o Rio de Janeiro, de 26 a 31 de julho de 1987.

A pauta votada no início do encontro foi cumprida, no dia 14 e na tarde do dia 15, dedicando-se as noites aos temas a estas destinados.

Valeria a pena, mas não se fará, colocar nesta síntese os resultados dos grupos de estudo com as complementações do plenário. Muita reflexão e proposta que, mesmo após vinte e cinco anos, permanecem válidas.

As avaliações feitas no final do Encontro foram bem positivas. Como aspectos negativos colocaram-se a insuficiência do tempo, o preço e limitações da hospedagem. Transcrevemos os pontos positivos:

“Meminisse iuvat”, diziam os antigos. Recordar ajuda. Recordar é reviver. Percorrendo a lista dos que foram ou são sócios da SBC, vemos como esta representa bem a Igreja no Brasil, na variedade, qualificação e méritos de seus membros, presentes e atuantes nas funções e cargos os mais diversos, ostentando a púrpura cardinalícia ou à frente de dioceses, ocupando relevante posto na Santa Sé ou quase esquecidos num recanto do país, a cumprir com generosa dignidade humildes ofícios eclesiais; muitos já participando jubilosos da Jerusalém celeste.

Parabéns, portanto, à SBC nos seus quase vinte cinco anos de fecunda existência. Feliz êxito à sua operosa Presidência, ao promover essas celebrações jubilares.