"Lumen Fidei é um texto doutrinal clássico e nisso se nota a escrita de Ratzinger e o assentimento de Bergoglio. Entretanto, com detalhes que os conhecedores da linguagem eclesiástica mencionariam como "pastorais" e que, sem modificar o essencial da doutrina, deixam abertas as portas para o diálogo e a proximidade com seus pares e estranhos. Essa é uma atitude e uma decisão de Bergoglio", opina o jornalista Washington Uranga, em artigo publicado no jornal Página/12, 07-07-2013. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

Próximo de completar quatro meses na direção da Igreja católica, o papa Francisco continua gerando fatos que consolidam o que, certamente, será o perfil de seu pontificado: tentar recuperar a credibilidade da Igreja católica diante do mundo através de operações de limpeza e de transparência contra pedófilos e corruptos, respaldar o diálogo com os próprios e estranhos, e reafirmar o essencial e substancial da doutrina católica tradicional, mas sem se distanciar de uma perspectiva pastoral que mantenha abertas as portas da Igreja. Tudo isso, sem perder seu próprio estilo: nada de declarações grandiloquentes ou grandes medidas. Pequenos gestos, simples, ligados ao cotidiano e um fluxo constante de mensagens breves, como manchetes que se manifestam nas audiências.

A encíclica Lumen Fidei (a luza da fé), conhecida esta semana, um texto breve em comparação com outros documentos papais, é na realidade uma reafirmação de questões essenciais da fé católica. Não há no texto maior novidade ou questões desconhecidas ou novas. Nesse sentido, pode se dizer que se trata de um documento "conservador".

Ao mesmo tempo, como o próprio Francisco admite, é um documento de transição. "Escrita a quatro mãos", disse Bergoglio para reconhecer que a encíclica tinha sido iniciada por Ratzinger pouco antes de renunciar como Bento XVI. Francisco a retomou e a completou. Francisco é um cuidadoso dos detalhes, também na comunicação. Por isso, não se deve estranhar que no lugar da tradicional foto do Papa assinando a encíclica – Francisco é o único signatário do documento porque há um papa, não dois –, a Santa Sé tenha publicado uma imagem de Bento XVI e Francisco se cumprimentando nos jardins vaticanos, no mesmo dia em que a encíclica foi divulgada.

Lumen Fidei é um texto doutrinal clássico e nisso se nota a escrita de Ratzinger e o assentimento de Bergoglio. Entretanto, com detalhes que os conhecedores da linguagem eclesiástica mencionariam como "pastorais" e que, sem modificar o essencial da doutrina, deixam abertas as portas para o diálogo e a proximidade com seus pares e estranhos. Essa é uma atitude e uma decisão de Bergoglio. Para uma amostra, um exemplo. Os números 52 e 53 da encíclica possuem como título "fé e família". Como era de esperar, ali se reafirma a doutrina católica sobre a família: união heterossexual entre "um homem e uma mulher", sublinhando, além disso, "a bondade da diferenciação sexual, que permite aos cônjuges se unir em uma só carne". No entanto, há um detalhe que pode passar impensado para um leitor distante, mas que não o é para o próprio Papa: refere-se ao casamento como "união estável" e não como "união indissolúvel", como comumente o Vaticano fazia. Mudará a doutrina da Igreja sobre o casamento? Nada indica isto. Porém, a substituição da palavra "indissolúvel" por "estável" pode ser lida como uma mensagem aos católicos que, mesmo tendo se divorciado, refazem sua vida e continuam se considerando parte da Igreja. É um recado mais "pastoral" do que doutrinal. Neste caso, Francisco introduz em um documento pontifício o que muitos bispos e sacerdotes fazem no mundo todo: flexibilizar a doutrina, atendendo caso por caso, e acolhendo as "ovelhas" dispersas.

Em Roma, há aqueles que antecipam que, após esta encíclica, logo virá outra de Francisco, que terá seu eixo na bem-aventurança bíblica para os pobres. Sejam quais forem os passos seguintes, está claro que Bergoglio não fará uma revolução na Igreja. Assim como é claro que continuará tentando recuperar a credibilidade da instituição eclesiástica. Para isso, decidiu colocar a própria casa em ordem. Tomou a iniciativa contra a pedofilia, decidiu criar uma comissão especial de cardeais – acima de toda a estrutura vaticana – para reformar o governo da Igreja e está tomando medidas para dar transparência às finanças da Santa Sé, especialmente no IOR (Instituto para as Obras de Religião). Um prelado vaticano, Nunzio Scarano, está preso numa prisão italiana sob suspeita de um crime de corrupção por 20 milhões de euros, presumivelmente cometido por meio do IOR. Diferente de seus antecessores, Francisco não moveu um dedo para impedir que Scarano seja interrogado pela justiça italiana e termine na prisão.

É dispensável dizer que todas estas decisões de Bergoglio geram muito mal-estar nos âmbitos tradicionais da burocracia católica.

Esta semana, Francisco também anunciou a canonização de João Paulo II, uma figura reconhecida por seu carisma, mas ao mesmo tempo questionado por não ter punido os pedófilos (ganhou muito destaque o encobrimento do sacerdote mexicano Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo). Como também em não colocar limite na corrupção das finanças vaticanas. Francisco decidiu canonizar o papa Wojtyla, mas "empatou" o jogo e fez uso de atribuições especiais para fazer o mesmo, e simultaneamente, com João XXIII, o simples e camponês Angelo Roncalli (1881-1963), que teve a coragem de dar o passo de convocar o Concílio Vaticano II.

Francisco está ocasionando mudanças na Igreja e na relação desta com a sociedade. Com seu estilo, somando gestos e mandando mensagens breves como se fossem envios de Twitter ou construções de manchetes dos jornais. Como fez no dia em que disse que deseja "uma Igreja pobre e para os pobres" ou quando anunciou que "para minha própria saúde mental, fico morando em Santa Marta, porque não quero viver isolado". Ou, ontem, quando disse em um discurso improvisado, numa audiência com seis mil seminaristas, que "dói ver uma freira ou um padre com o último modelo de carro".

Será necessário seguir com atenção suas mensagens na visita ao Brasil, de 23 a 28 deste mês. Ali estará o Papa latino-americano falando aos jovens do mundo todo, mas, ao mesmo tempo, atento com a própria situação do Brasil e da região. Será outra vez uma situação inédita.

Além do exposto, Bergoglio não se esquece da Argentina. Continua com seus contatos e reuniões. Algumas públicas. Muitas privadas. Também há ligações telefônicas. Não fala publicamente sobre o país, mas tira fotos. A mesma metodologia de quando era cardeal em Buenos Aires. Em muitos sentidos, Francisco continua sendo Bergoglio. Isso é suficiente para gerar sacudidas e mal-estar na atrofiada estrutura eclesiástica católica vaticana e para continuar presente e atormentando o cenário político argentino.