Convém esclarecer inicialmente os motivos pelos quais os capítulos de defeito de discrição de juízo de incapacidade de assumir as obrigações essenciais do matrimônio foram concordados subordinadamente, embora haja quem diga o contrário. Na realidade baseia-se a incapacidade de assumir as obrigações essenciais do matrimônio - como capítulo autônomo do defeito de discrição de juízo - na hipótese de que o ato psicológico do consentimento possa ser emitido em seu aspecto subjetivo, embora a pessoa esteja incapacitada de assumir o objeto, que, entretanto, consciente e livremente desejou assumir. Vindo a faltar, portanto, o aspecto subjetivo do consentimento, isto é, vindo a faltar a faculdade crítica com relação ás mútuas obrigações essenciais do matrimônio, cai já por terra o pressuposto para a incapacidade de assumir as mesmas obrigações, não se podendo falar concomitantemente de incapacidade para assumir. Não pode, com efeito, assumir (Cân. 1095, 3º) quem não pode consciente e livremente aceitar o matrimônio (Cân. 1095, 2º). Com relação a esta última afirmação estão de acordo o decreto c. EGAN, Meliten, 2 de abril de 1981, ARRT Dec.. vol. LXXIII [1981], p. 216, n. 10 e a sentença c. STANKIEWICZ, Mutinen. seu Placentina, 16 de dezembro de 1982, n. 10, não publicada no volume Decisiones seu Sententiæ, mas protocolada sob n. 13.310, sentença n. 175/82, no Arquivo do Tribunal Apostólico da Rota Romana.

3. Segundo o cânon 1095, 2º, são incapazes de contrair matrimônio as pessoas que "têm grave falta de discrição de juízo a respeito dos direitos e obrigações essenciais do matrimônio, que se devem mutuamente dar e receber". Requer-se para a capacidade de emitir valido consentimento matrimonial um juízo crítico concreto sobre o matrimônio a ser celebrado. A discrição de juízo a que se refere o mencionado cânon não se refere à função prática ou operativa do mesmo, que produz a faculdade crítica. Isso é requerido pela própria dinâmica do ato volitivo. Sem um juízo prático de convivência sobre determinado objeto, é impossível que haja ato de vontade, de acordo com a doutrina do doutor Angélico: "Intellectus speculativus est, qui quod apprehendit, non ordinat ad opus, sed ad solam veritatis considerationem: practicus vero intellectus dicitur, qui hoc quod apprehendit, ordinat ad opus" "Sicut imaginatio formæ sine æstimatione convenientis vel nocivi, non movet appetitum sensitivum; ita nec apprehensivo veri sine ratione boni et appetibilis. Unde intellectus speculativus non movet, sed intellectus practicus". Pode, portanto, uma pessoa conservar clara noção especulativa do que seja o matrimônio, mas estando incapacitada de formar um juízo de valor prático e existencial sobre as obrigações essenciais do matrimônio a serem contraídas no caso concreto, hic et nunc, essa pessoa não poderá estar capacitada a emitir válido consentimento matrimonial, como ensina a jurisprudência da Rota Romana em inúmeras decisões.

4. pode acontecer, com certa freqüência, em casos de neuroses e psicopatias, que o sujeito se encontre afetado em seu intelecto prático, sem que o intelecto especulativo esteja comprometido, a tal ponto que o nubente conheça perfeitamente o que seja o matrimônio, mas esteja incapacitado de avaliar hic et nunc suas obrigações a serem contraídas, como referido no item anterior. Esse matrimônio seria nulo por incapacidade de crítica ou defeito de discrição de juízo. A incapacidade de formar um juízo prático concreto com relação a determinado matrimônio a ser celebrado, por parte de neuróticos e personalidades psicopáticas, ocorre às vezes na jurisprudência rotal nos casos de grave hesitação ou conflito de motivos, próprios de personalidades inseguras, sujeitas a angústias e depressões. São estas então impelidas inexoravelmente pelas circunstâncias à celebração de núpcias sem capacidade crítica, já que a ação realizada nesse casos se reduz a meros impulsos instintivos, nos quais não podem colaborar devidamente o intelecto e a vontade em virtude de grave perturbação da harmonia geral do psiquismo ou personalidade. Evidentemente para que um estado de dúvida impeça o reto uso da faculdade crítica deve revestir-se de caráter abnorme ou patológico. Tal não se verifica nos casos de dúvidas normais, que podem afetar qualquer pessoa em busca de solução criteriosa, pois isso indica, pelo contrário, perfeita discrição de juízo. Deve-se ainda observar que certo estado conflitual é inerente à natureza humana e não impede o livre exercício da vontade.

5. Os estados de grave hesitação e conflito de motivos são ainda mais comprometedores para a função de raciocínio quando a eles se somam a depressão e a angústia, que impedem o curso do pensamento, prendendo-o a uma idéia única (monideísmo): "Nella depressione riscontriamo un impedimento al corso Del pensiero, Che già affiera negli stati di tristezza Del sano: l'intera attività mentale si appunta non si modifica Che a fática e spesso è impossibile cio avvenga; tale predominante rappresentazione da cui i pazienti riescono a prescindere, riguarda la loro immaginaria infelicita: monideismo" "Nello stato depressivo (...) il corso delle idee è inibito (...), procede con maggior lentezza; pensare sino in fondo qualcosa costa fática; la sostituzione di um'intenzionalità con un'altra risulta penosa oppure Del tutto impossibile; i malati non fanno Che ricadere nelle stesse idee di contenuto triste, o non riescono mai a liberarsene: monideismo. La depressione può avere tonalità diverse. (...). Um'importanza particolare riveste l'angoscia. Spesso è associata alle forme abituali della depressione...". Aos estados de depressão e angústia são associados com freqüência distúrbios dos órgãos digestivos, insuficiente secreção das glândulas do tubo digestivo como garganta seca e distúrbios funcionais dos órgãos sexuais como a ejaculação precoce: "A stati depressivi ed ansiosi si associano con particolare frequenza disturbi agli organi digestivi: inappetenza, che può giungere sino al rifuto Del  cibo; insufficiente secrezione delle ghiandole del tubo digerente con gola secca (...) a questi stati se accompagnano poi, per solito, disturbi funzionali degli organi sessuali: atrofia della libido, impotenza, ejaculatio praecox" "Del massimo rilievo clinico sono inoltre gli ecchi di un'evoluzione nevrotica sugli organi sessuali: nell'uomo particolarmente impotenza ed eiaculatio praecox...".

6. Estão também incapacitados de contrair matrimônio "os que não são capazes de assumir as obrigações essenciais do matrimônio por causas de natureza psíquica" (Cân. 1095, 3º). Essas obrigações essenciais não se referem apenas aos três bens clássicos do matrimônio, mas dizem respeito também às relações interpessoais dos cônjuges atinentes à "comunhão de vidas", como esclarecem os consultores para a revisão do Código de Direito Canônico, encarregados da matéria matrimonial. Na realidade, o Concílio Vaticano II apresenta o matrimônio como íntima comunidade de vida e de amor, na qual os cônjuges se entregam e recebem mutuamente, como doação de duas pessoas. Essa visão do matrimônio como relação interpessoal é transferida para o atual Código de Direito Canônico, que descreve o casamento como totius vitæ consortium (Cân. 1055, § 1), no qual os coniuges sese mutuo tradunt et accipiunt (Cân. 1057, § 2) ou consortium permanens inter virum et mulierem (Cân. 1096, § 1). Por essa razão a jurisprudência rotal tem considerado nulos os matrimônios nos quais um ou ambos os nubentes são incapazes, ao contrair matrimônio relações interpessoais conjugais. Entre as numerosas sentenças bastaria citar as seguintes: "Incapacitas tamen onera coniugalia assumendi, præter memoratum elementum biologicum, illam quoque comprehendit intimam vitæ communitatem id est coniugalem stabilemque interpersonalem necessitudinem, seu relationem, in duaru personarum donatione positam". "In specie, inhabilis ad matrimonium habetur nupturiens qui nequit constituere sanam relationem interpesonalem: nempe, incapacitas adsumendi obligationes essentiales comprehendit quoque illam vitæ intimam communionem quæ consistit in donatione duarum personarum ad invicem".

7. Para tipificar-se essa incapacidade não basta qualquer causa psíquica, mas deve ela ser qualificada, isto é, deve ser tal que realmente impeça a comunidade de vida e não apenas a dificulte, conforme reza o cânon 1095, 3º "assumere non valent". Como esclarece o Romano Pontífice João Paulo II, tal incapacidade somente pode ser compreendida na existência de série forma de anomalia: "Per il canonista deve rimanere chiaro il principio che solo la incapacita, e no già la difficoltà  a prestare il consenso e a realizzare una vera comunità di vita ed amore, rende nullo il matrimonio. (...) Uma vera incapacita è ipotizzabile solo in presenza di una seria forma de anomalia che, comunque si voglia definire, deve intaccare sostanzialmente le capacita di intendere e/0 di volere del contraente". Considerando ser o Legislador Supremo quem fala, bem como as circunstãncias em que tal discurso se insere o alto destinatário, o Tribunal Apostólico da Rota Romana, ao qual compete prover à unidade da jurisprudência e, através de suas sentenças, servir de auxílio aos tribunais inferiores, há que se considerar esses pronunciamentos como uma orientação autorizada na interpretação do cânon 1095, 3º. Assim o tem entendido o próprio Tribunal Apostólico da Rota Romana, que vem citando essas palavras do Santo Padre para interpretar o sentido do cân. 1095, 3º. Afirma DORAN em sua citada sentença que o Santo Padre não pode falar de modo mais claro: "Summus quidem Pontifex (...) cvlarius loqui nequit". A esses esclarecimentos do Santo Padre devemos acrescentar suas palavras dirigidas à Rota Romana no ano seguinte: "Solo te forme suas gravi di psicopatologia arrivano ad intaccare la liberta della persona".

8. Como sentenciam diversas sentenças rotais, a incapacidade para assumir as obrigações essenciais do matrimônio não deve ser necessariamente perpétua para invaliar o contrato matrimonial, bastando sua existência no momento da prestação do consentimento matrimonial. Seria útil transcrever aqui as palavras de uma sentença de c. BRUNO, em que, tratando do problema. "Utrum tempore celebrationis coniugii in subiecto sufficiens aderat capacitas psychica ad communionem vitæ obeundum, necne", assim prossegue: "Minime hic sermo institui valet de possibili emendabilitate defectus. Matrimonium enim efficitur per manifestationem consensus inter personas habiles momento contractus; ideoque si una vel utrique parti die matrimonii, ob psychicum defectum habilitas seu integratio interpesonalis vel intrapersonalis graviter defuit, consensus invalidus censendus est, qui nullo modo per subsequentem forte recuperandam aut recuperantam valetudinem sanari potest". Outras sentenças mais numerosas do Tribunal Apostólico exigem, porém consentimento matrimonial e isto por analogia com a impotência coeundi, que deve ser necessariamente perpétua (Cân. 1084, § 1). Com esta última posição não concorda o auditor rotal POMPEDDA, que refuta a mencionada analogia, pois a capacidade de assumir as obrigações essenciais do matrimônio empenha toda a vida dos cônjuges e não pode, portanto, faltar no momento da celebração do contrato. A potência sexual, ao invés, refere-se à capacidade de consumar o matrimônio, o que se perfaz através de uma única cópula, não empenhando toda  a vida matrimonial. Pode, portanto, não existir no momento da celebração do matrimônio, podendo vir a ser sanada posteriormente: "Etenim potentia sexualis dicit capacitatem consummandi matrimonii: quod per vel unam copulam fit; capacitas vero adsumendi obligationes essentiales refertur ad statum coniugalem, qui non uno tempore coarctatur sed spectat perpetuam coniugum vitam. Potentia sexualis deficere potest momento celebrati matrimonii atque postea superveniens efficit ut matrimonium valeat consummari; capacitas adsumendi cum sit in perpetuum atque ex consensu oriatur, ne momento quidem deficere potest". Aderimos à posição de POMPEDDA e da primeira corrente citada da jurisprudência rotal, por nos parecer clara a argumentação por ele apresentada. Além do mais, a incapcidade para assumir as obrigações essenciais do matrimônio se insere no capítulo de consentimento matrimonial (cân. 1095, 3º), bastando, pois, verificar-se tal incapacidade no ato da celebração do matrimônio, porém, é um impedimento, que afeta a pessoa e não o consentimento matrimonial, não havendo, pois, paralelismo com a incapacidade para assumir as obrigações essenciais do matrimônio.


Cf. A opinião contrária no decreto c. ZAGGIA, Patavina, 30 de junho de 1988, do Tribunal Eclesiástico Regional Triveneto in: La giurisprudenza dei Tribunali Ecclesiastici Italiani, Libreria Editrice Vaticana, 1989, pp. 431-421.

Cf. monografia de José Geraldo Caiuby CRESCENTI. Falta de liberdade interna e nulidade de consentimento matrimonial. Reflexões sobre o princípio "ubi intellectus, ibi voluntas" nas decisões da Rota Romana (1977-1986).Roma: Centro Academico Romano della Santa Croce, 1990, pp. 8-10.

S.Theol. I, q. 79, art. 11, in corp.

S.Theol. I-II, q. 9, art. 1, ad 2um.

Sobre a doutrina tomista a respeito da necessidade do intelecto prático para o ato de vontade e a respectiva doutrina rotal sobre este mesmo assunto. Ver monografia de José Geraldo Caiuby CRESCENTI. Op. Cit., pp. 34-39; pp. 105-117.

Cf. v.g. c. FIORE, Parisien, 22 de fevereiro de 1980, ARRT Dec. Vol. LXXII [1980], pp. 103-114; c. E. JORIO, Indianapolitana, 19 de julho de 1967, ARRT Dec. Vol. LIX [1967], pp. 605-606, n. 9, p. 612, n. 14.

C. EGAN, Herbipolen., 20 de janeiro de 1978, ARRT DEc. Vol. LXX [1978], pp 41-42, n. 4.

C. FERRANO, Divionen., 24 de abril de 1979, n. 9, sentença não publicada no volume Decesiones seu Sententiæ, mas protocolada sob n. 11.680, sentença n. 65/79 no Arquivo do Tribunal Apostólico da Rota Romana.

BLEULER, E. Trattato di psichiatria: Feltrineli, 1967, p. 55.

Idem et ibidem, p. 84.

Idem et ibidem, pp. 85-86.

Idem et inidem, p. 582.

COMMUNICATIONES [1977], pp. 374-375.

Const. Past. Gaudium et Spes, n. 48, AAS vol. LVIII [1966], pp. 1067 e 1068.

c.PARISELLA, Parisien, 11 de maio de 1978, ARRT Dec. Vol. LXX [1978], p. 289, n. 3.

c. EWERS, Marianopolitana, 4 de abril de 1981, ARRT Dec. Vol. LXXIII [1981], p. 221, n. 7. cf ainda c. ANNÉ, Marianopolitana, 25 de fevereiro de 1969, ARRT Dec vol. LXI [1969], pp. 183-184, n. 16.

Discurso à Rota Romana em 5 de fevereiro de 1987, AAS vol. LXXIX [1987], p. 1457, n. 7.

Cf. Constituição Apostólica Pastor Bonus de 28 de junho de 1988, art. 126, AAS vol. LXXX [1988], p. 892.

c.CORSO, Portugallen., 13 de maio de 1988 in Monitor Ecclesiasticus, vol. CXV [1990], p. 258, n. 8; c. DORAN, Brovnsvillensis, 1º de julho de 1988 in Ius Ecclesiae, vol II [1990], p. 162, n. 11.

Discurso á Rota Romana de 25 de janeiro de 1988, AAS, vol. LXXX [1988], p. 1182, n. 6.

c. HEARD. Dec XLIV, 5 de junho de 1941, ARRT Dec vol. XXXIII [1941], p. 494, n. 7; c. ANNÉ, Aquen., 17 de janeiro de 1967, ARRT Dec vol. LIX [1967], pp. 29 e 30, n. 11.

c.BRUNO, Parisien., 17 de junho de 1983, n. 7.

ARRT Dec. Vol LXXV [1983], pp. 361-362.

Ver citação das sentenças rotais feitas por MOSTAZA RODRIGUEZ, Antonio. Nuevo Derecho Canónico.Madrid: Biblioteca de Autires Cristianos, 1983, p. 245, nota 45.

In: Periodica, vol XXII [1982], pp. 196 e 197, nn. 8 e 9, sob o título Annotazioni circa la incapacitas adsumendi onera coniugalia.