O leitor querido deve se lembrar, ou, dependendo da idade, pelo menos já ouviu falar do episódio ocorrido em 4 de junho de 1989, na Praça Celestial, em Pequim, na China. Naquele dia que entrou para os anais da história, há exatos vinte anos, um jovem chinês, com muito destemor e impetuosidade, enfrentou uma fila de tanques de guerra. Pôs-se na frente dessas máquinas enormes e impedia, com o próprio corpo, a passagem delas.

É claro que o mérito e título de herói cabem exclusivamente ao moço chinês, porquanto ele não apenas arrostou as poderosas armas bélicas, mas o duríssimo regime comunista da época. No entanto, os pilotos dos tanques, notadamente o homem que conduzia o primeiro tanque da fila, merecem nosso respeito. Explico.

No Brasil, já virou notícia corriqueira a morte estúpida de pessoas no trânsito. Não faz muito tempo, um promotor de justiça ébrio, em Jundiaí, com seu bonito e potente carrão, atropelou uma família inteira, malferindo-a mortalmente. Este é só um exemplo em meio de milhares de ocorrências letais na condução irresponsável de veículos automotores.

Há motoristas que não dão a mínima para seu semelhante e assumem, explicitamente, a posição de algozes, prontos para meter suas máquinas mortíferas em cima de quem, na ótica enviesada deles, ousar um desafio qualquer. Pessoas assim carecem da dignidade que parecia sobejar no condutor do tanque de guerra da Praça Celestial. O soldado poderia ter avançado de encontro ao rapaz, ao argumento, especioso é claro, de que o interesse do estado de debelar a insurreição encontrava-se acima de quaisquer bens individuais. Todavia, o tanque foi freado; ziguezagueou, na tentativa de se desviar do manifestante. Creio que o piloto do primeiro tanque da fila era deveras um varão digno, pois estava cônscio do valor inestimável da vida humana e, portanto, cedeu diante daqu ela frágil criatura.

Todo mundo já ouviu o mesmo bordão: morre-se mais no trânsito brasileiro do que na guerra do Iraque. Isto é um absurdo, realmente. Nada obstante, o absurdo se torna pior, se pararmos para pensar que nosso país é a maior nação católica do planeta. Ora, alguma coisa está errada, então. A religião não tem permeado o dia a dia. Talvez ela seja tão-somente um verniz, e não influa nas nossas decisões comezinhas, não nos torne sequer motoristas prudentes.

Espelhemo-nos no exemplo do estudante que galhardamente postou-se na frente do tanque de guerra, porém, com bastante humildade, sem a pretensão de sermos grandes heróis, imitemos, também, o comportamento digno do piloto do primeiro tanque da fila.

 

Edson Luiz Sampel


*Artigo para o hebdomadário arquidiocesano O São Paulo.