DIREITO, JUSTIÇA, PERDÃO.

       Inicialmente, tenho a dizer que nesta exposição tentarei juntar três temas profundamente ricos de conteúdo, por certo, sem querer ser exaustivo, o que seria, se o tentasse faze-lo, descabida pretensão.

         Preliminarmente, tenho que respeitar uma questão de ordem, ou seja, afirmar que Direito, Justiça e Perdão são princípios e conteúdos da mesma e única estrutura, também porque são estritamente correlacionados entre si.

         O Direito está para a justiça, assim como e com certeza, ambos estarão para o perdão. Este se constitui no cerne do Mistério da nossa Redenção. Foi pela infinita misericórdia do Senhor Deus do Antigo Testamento que no Novo Cristo Deus se faz homem para a nossa justificação cumprindo toda a justiça, chama à conversão todos os que dela necessitam e suscita essa conversão (Lc 9,1-10), revelando que Deus é um Pai cuja alegria consiste em perdoar (Lc 15). Jesus não somente anuncia esse perdão ao qual a fé humilde se abre, ao passo que o orgulho se lhe fecha (Lc 7,47-50; Ele o exerce e por suas obras atesta que dispõe deste poder reservado a Deus (Mc 2,5-11=Jo 5,21)).

         O Direito comporta dois pólos, um coletivo, outro individual. Ele é ao mesmo tempo a ordem que rege o conjunto das relações humanas no interior duma comunidade, e também o reconhecimento de possibilidades determinadas garantido a cada indivíduo. Toda comunidade possui seu direito próprio, caracterizado pela maneira em que ela define e assegura os direitos pessoais de seus membros. A comunidade de Israel não só tem o seu, senão que dele se orgulha e o considera como um dos favores mais preciosos que recebeu de Deus (Dt 4,6ss).

         Através de toda a Sagrada Escritura a associação de direito e justiça assinala uma exigência permanente da consciência. É essa a pregação dos Profetas (Am 5,7.24; Is 5,7.16; Jr 4,2); é a lição dos sábios (Pv 2,9); é um dos aspectos mais importantes da esperança messiânica (Is 1,27; 11,5; 28,17). E o primeiro a realizar tal ideal é o próprio Deus (Sl 19,10; 89,15; 119,7). "Aquele que fixa o direito de toda a terra não seria capaz de violar o direito" (Gên 18,25).

         Já no Novo Testamento, a alusão ao direito e à justiça é uma reafirmação do que o Antigo estabelecia, aperfeiçoado pelo Evangelho. A norma áurea deste prescreve, com efeito: "Tudo que desejais os outros façam por vós, fazei-o vós mesmos por eles" (Mt 7,12). O mandamento próprio de Jesus é: "Amai-vos uns aos outros como eu vos amei" (Jô 13,34) Aí não há nada que esteja abolindo ou diminuindo a atenção ao direito de cada qual exigida pelo Antigo Testamento. O que há é uma inspiração nova, o apelo a identificar-se com o outro, uma preocupação de partilha e de comunhão até o sacrifício total. Só o amor, em última análise, fundamenta o direito.

         Sem se prender excessivamente à etimologia do termo direito, que deriva imediatamente do latim, directum, muito embora no Direito Romano o vocábulo utilizado para exprimir o direito era outro e atualmente, os filósofos e juristas atribuem ao termo "ius" latino uma dupla origem provável. Alguns crêem que esta palavra procede da raiz sânscrita "ju", que expressa a idéia de vínculo ou união. Outros preferem faze-la derivar da forma indo-germânica "yos" ou "yaus", com a significação de bom, santo, puro, pertencente à divindade, felicidade religiosa. Daqui  a palavra "iurare" (=jurar). Segundo esta etimologia, o direito, "ius" significava a vontade divina. Mas o uso distinguiu entre lei e vontade divina (fas) e lei humana (ius).

         Na língua grega a idéia de direito (ius) se expressa com dois termos: (Zémis), que significa o direito divino (fas); e (Nómos), termo que designa a lei humana (lex). Ao passo que a idéia de justiça vem expressa com a palavra (dike), ou seja, com a significação de indicar, porque justiça em grego, como a termo direito, indica-se a direção ou linha reta que se devem seguir as ações humanas. A justiça adquire um conceito mais fundamental que o mesmo direito, ou seja, considera-se a justiça como a base do direito.

         Não tenho o propósito de esgotar aqui a noção de direito e as diversas concepções e sistemas jurídicos, até porque as definições que se dão de direito são exageradamente muitas e algumas delas até contrárias, porque se baseiam em diversas concepções jurídicas e políticas das diversas épocas da História.

         A título de referência, apresento somente a concepção católica do direito que se baseia no direito natural e na lei eterna. Parto do pressuposto de que existe uma conexão e dependência que todo o direito tem da lei eterna e a conexão mais concreta com o direito positivo. Assim sendo, podemos oferecer a seguinte conceituação geral e unitária do direito: "É a realização da justiça divina na conduta social humana, mediante um sistema de normas obrigatórias e coativas, geradoras de faculdades e deveres". Tal definição contém todos os elementos do direito. Seu objeto e fim: a realização da vontade divina; sua causa eficiente: a norma jurídica (lei, costumes...). A causa formal: a faculdade moral adquirida pelo sujeito de direito.

         Acertadamente escreveu Renard: "O direito positivo é uma aproximação da justiça e do direito natural". Também Giorgio Del Vecchio considera o direito como realização da justiça, quando afirma "que a justiça se reflete variadamente em todas as leis, mas sem se esgotar em nenhuma delas", muito embora, entenda a justiça como paradigma e modelo ideal do direito positivo.

         Os canonistas e estudiosos do direito, em vez de uma definição genérica e unitária do direito, elaboraram conceito ou definições de cada uma das três formas ou elementos de um mesmo direito. Penso que interessa aqui ater-nos especificamente na significação objetiva do direito, que diz que é aquele que dá a cada um o que lhe pertence por título de justiça, seja comutativa, legal ou distributiva, como meio necessário ou condizente à realização do fim assinalado por Deus, que é, em definitivo, a salvação eterna. Portanto, em sentido objetivo o direito é aquele que cada um pode chamar seu. Neste sentido, a vida, a honra, a liberdade, inclusive a de trabalhar, são nossos direitos. Completando, direito em sentido objetivo, pode-se dizer, que é todo aquele que a cada um lhe pertence estritamente ou por título de justiça na ordem social, segundo o direito divino ou o direito humano em conformidade com o divino. "Nihil est in temporali lege iustum, diz Santo Agostinho, quod lege aeterna non derivetur".

         Não é válido o direito que não é justo, porque carece de seu próprio objeto e de força obrigatória.

         O direito deve ser racional e inviolável. São, como que, duas propriedades essenciais do direito. Racional porque, do contrário, o direito humano não seria conforme a natureza humana, cujas relações sociais deve dirigir. Como exprime Santo Tomás de Aquino, o Direito em geral, como a lei, é essencialmente "ordinatio rationis" (=ordenação da razão).

         Para que o direito seja racional, antes de tudo, deve ser justo e possível.

         O direito não consiste no fato consumado. O fato não é lei, mas que há de ser regulado pelo direito, a verdadeira norma. Do fato, juntamente com o direito objetivo ou causal, nasce o direito subjetivo. Tão pouco consiste o direito na força maior. A força coativa unicamente serve para garantir a obrigatoriedade do direito.

         Ao direito racional se opõe o arbitrário. Um mandato pode ser legítimo por sua origem e, por sua vez, arbitrário por seu conteúdo caprichoso, sem sujeição a nenhuma regra ou princípio.

         O direito deve ser inviolável. Primeiramente, porque impõe uma obrigação moral que necessariamente se deve cumprir. Nisto coincide a obrigação jurídica com a obrigação moral. Mas o direito goza de uma especial garantia externa de inviolabilidade enquanto que o seu cumprimento se pode exigir pela força judicial ou a imposição de sanções que reparam o dano causado e previnem novas infrações.

         Ainda que se afirme que o direito é coativo, não existe uma sentença unânime sobre se a coação seja elemento essencial ou somente integrante do direito. Mas isto não nos convém debater aqui, por se tratar de tema ainda polêmico; penso deva ser deixado para debates e reflexão entre os doutrinadores e estudiosos do direito para ulterior conclusão, se for o caso.

         Ainda em nosso tempo existe quem questione acerca do direito natural ou da lei natural. Também esta questão não deve se constituir em debate nesta oportunidade, até porque, aqui não é esse nosso objetivo e nem tem como fórum para tanto.

         Mas o direito natural é definido por Santo Tomás de Aquino, como: "participatio legis aeternae in rationali creatura". Pode-se dizer: trata-se da lei divina infundida na natureza e particularmente, na natureza humana.

Ou ainda, o conjunto de normas que procedem da vontade necessária de Deus e estão expressas na natureza humana acerca das exigências da natureza racional. Na realidade ou entitativamente, o direito não se diferencia da lei eterna, mas que a mesma lei eterna se denomina lei ou direito natural enquanto recebida no e pelo homem.

O direito natural tem suas notas essenciais: 1. Vontade divina e, 2.  Manifestação desta mesma vontade. Vontade divina que manda o que é exigido pela natureza humana e manifestação da vontade divina na mesma exigência intrínseca da natureza humana ou na necessária conformidade com ela.

Propriedades essenciais do direito natural são: 1. A moralidade intrínseca por razão de seu objeto: a unidade e a universalidade, porque é um mesmo para todos os homens sem exceção, até porque está fundamentado na natureza humana;

2. Perpetuidade, pela mesma razão;

3. Cognocibilidade, acerca do supremo princípio que ensina e imutabilidade, ou seja, pode-se dar a mutabilidade impropriamente dita, que tem lugar quando não é a lei que muda, mas sua forma de aplicação.

          Direito existe, por certo, para regular as relações entre os seres humanos. E sabemos que a vida humana é, essencialmente, convivente; a existência humana é existência compartilhada, Mit-Dasein, coexistência e convivência, até porque, o homem que é pessoa, se constitui em e na relação com os demais, também porque está aberto ao outro, idéia que pode ser considerada patrimônio comum da filosofia atual.

Assim, pode-se afirmar que o instinto agressivo como é não pode predominar e nem se converter no que chamamos de autêntica "convivência", mas sim que deve predominar a força do direito sobre as consciências.

É verdade que o direito pertence ao âmbito do ontológico da vida humana em sua dimensão de sociedade; é, por isso, ação, comportamento, conduta, mas com um sentido de normatividade. O conjunto de normas que integram um ordenamento jurídico constitui o sistema de legalidade. O direito aparece em forma de legalidade, mas está plenamente nos comportamentos socializados dos homens. E o que dá caráter e sentido jurídico aos comportamentos interumanos é a possibilidade de emitir sobre eles um juízo de justiça ou injustiça. O que constitui o fundamento da obrigatoriedade das normas é a justificação de sua pretensão de valer como justas. Onde não tem sentido falar de justiça, não é possível falar de Direito.

E o que dizer do direito positivo? Este é sistema de normas jurídicas que procedem da livre e racional vontade do legislador divino ou humano e deve ser conforme o direito natural, tão pouco pode estar em oposição ao direito positivo divino. Creio que não cabe aqui também tecer pormenores sobre as propriedades essenciais do direito positivo, mas apenas dizer que ele deve estar fundamentado em alguma razão para comandar ou proibir, proceder da vontade do legislador, respeitando a justiça natural e em conformidade com a reta razão, podendo ser particular quanto ás pessoas, lugar e tempo, variável atendendo seu fim, objeto e demais circunstâncias e atinge somente a quem tem o uso de razão.

Encontramos dentre os jurisconsultos romanos, Ulpiano que assim define justiça: "A justiça consiste em dar a cada um o que é seu". E qual o seu de cada um? Para se poder dar a cada um o seu, seria preciso saber, desde logo, o que pertence a cada um. Ora, o princípio da justiça é invocado exatamente para dirimir a disputa entre partes que invocam aquilo que é seu.

A justiça é idéia, valor e ideal. Como idéia, é a representação abstrata do estado de pleno equilíbrio da vida social; como valor, poder-se-ia dizer que as coisas não constituem bens em si mesmas, sendo preciso lhes atribuir um valor. E o que é valor? Valor é a importância que se atribui a um bem. Mas a valoração dos bens varia no tempo e no espaço. Os valores sociais têm existência histórica, não são perpétuos. Ora, tendo como pressuposto um valor, a idéia de justiça varia constantemente: o que era justo para os antigos talvez não seja para nós, embora possa voltar a sê-lo no futuro. Não resta dúvida, porém, de que, modernamente, o valor predominante é a igualdade, como a liberdade o foi por ocasião da Revolução Francesa. Assim, invocamos nesta oportunidade, o direito, cujo fim será, sem dúvida responder às questões de justiça e dar-lhe guarida, fornecer-lhe soluções do justo, restabelecimento do equilíbrio social, da paz social.

O direito é uma ciência profundamente dinâmica e por isso fascinante admiravelmente, como elemento em constante evolução, porque deve oferecer à humanidade suporte atualizado contra o desequilíbrio e a desordem social, capaz de superar a injustiça, restabelecendo e fazendo a justiça.

         Como já se disse, o perdão ocupa o cerne da mensagem salvífica oferecida por Cristo ao mundo. Na Sagrada Escritura, o pecador é um devedor a quem Deus, com seu perdão, (no Hebraico: Salah) perdoa a dívida (Nr 14,19); perdão tão eficaz que Deus já não vê o pecado, o qual é como que jogado para trás (Is 38,17), expiado, destruído, em hebraico: kiper (Is 6,7). Cristo, utilizando o mesmo vocabulário, acentua que o perdão é gratuito e o devedor incapaz de saldar (Lc 7,42; Mt 18,25ss).

A pregação primitiva tem como objeto, juntamente com o dom do Espírito, a remissão dos pecados, seu primeiro efeito e que ela chama "aphesis" (At 2,38). Em outras palavras: purificar, lavar e justificar aparecem nos escritos apostólicos, que insistem no aspecto positivo do perdão, como reconciliação, reunião.

         Vejam aqui a lei que é direito e a justiça  perfeitamente vinculadas à mesma estrutura do perdão, ou seja, a reintegração e o restabelecimento da paz social não é outra coisa que, reconciliação, reunião.

         A justiça, pois, é um valor referência ao qual um setor da vida humana fica constituído como "jurídico", ou seja, como Direito; mas nem toda a vida humana permanece sob o jurídico. Amplíssimas zonas da vida permanecem extramuros do jurídico, zonas nas quais impera como norma o amor, e o qual se realiza em suas formas específicas de socialização, tais como a caridade e a amizade. Socialização no sentido estrito, entendendo o amor como ato personalíssimo. E as diferenças entre justiça e amor são estruturais e definem formas de vida estruturalmente diferentes, embora ambas, justiça e amor estão situados dentro da mesma totalidade da estrutura, assim como o Direito. Neste sentido, o perdão, por certo, estará situado dentro da estrutura do amor, como fruto do mesmo, também vinculado de alguma forma e, estruturalmente, ao Direito e à justiça.

         Assim, mesmo que o direito pela lei puna, terá sempre o objetivo de restabelecer a paz e o equilíbrio social, fazendo justiça, mas também, procurando realizar aquilo que o mesmo direito e a justiça tem como objetivo fundamental: fazer com que o delituoso ou delinqüente se corrija e seja reintegrado ao meio social, também pelo perdão, é claro, depois de pagar a própria culpa, caso contrário não haveria justiça.     

Concluindo, com um inusitado fato da história no Reino de França. A Princesa Luíza, filha de Luiz XV, Rei de França, maltratava muito sua camareira e um dia chegou até dar-lhe um tapa no rosto. A moça que suportava tudo com humildade, desta vez resolveu reagir e disse à Princesa: "Vossa Alteza não devia ter feito isto! Não fica bem para uma Princesa e muito menos para uma cristã". "Olhe com quem está falando", respondeu-lhe Luiza, "Quem é você para me responder? Sou filha do seu Rei, está ouvindo?" E eu sou filha do Seu Deus, Alteza, não se esqueça!"

No dia seguinte, Luiza chamou sua camareira, que atendeu ao chamado com medo de complicações sérias pelo que dissera.

"Estive conversando com meu pai... A partir deste dia você passa de simples camareira a uma das damas da corte... Mas só isto não basta, quero ainda que me perdoe".

                                                        Divinópolis, 19 de outubro de 2004                                                                                                                            Pe. Vicente Ferreira de Lima