Capítulo I

Vida e Direito, uma simbiose natural, no existir humano

Diante das normas e leis nos perguntamos da validade das mesmas e que bem elas nos poderiam trazer. Seria possível viver a liberdade dos filhos de Deus, sem leis? Deus nos criou para sermos como Ele, felizes. Ele, Trindade, nos criou à sua imagem e semelhança, com inteligência, vontade e sensibilidade. Ele nos criou comunidade, seres de relações que constroem e propiciam, vida e felicidade, em si e ao redor de si. Seu Plano formidável foi o de condividir conosco sua própria essência divina. Dando-nos a liberdade de ação, não nos força, aguarda nossa resposta positiva e crescente de generosidade, à "sua semelhança".. Entretanto, este Plano fantástico teve de ser re- escrito pela misericórdia divina, a partir do pecado. Caído, o Homem já não soube mais se ater aos limites no uso e poder, de sua liberdade. Quebrou sua espinha dorçal, desnorteou-se, já não contava com sua vontade direcionada unicamente ao bem. Limitado, entre limitados, sentiu a necessidade de criar normas para se comunicar e se relacionar com harmonia. Antes do pecado, as normas existiam sim mas, sem o colorido, peso e suor do após pecado.Ele fez a experiência do uso de sua liberdade diante do bem e do mal e precisou responder e assumir as conseqüências destas decisões tomadas.. "E Deus disse.. por que fizeste isso..." (Gen.3,14s.)
Enquanto só, a pessoa faz o que quer e vai aonde quer, sem ter de dar explicações a ninguém, tem espaços ilimitados.Um homem só numa ilha, pesca onde e na hora que deseja mas se um segundo homem aparece precisará certamente se por de acordo com ele. O grupo precisa ter um mínimo de organização interna para tornar possível a convivência humana.Ninguém nasce humano, humaniza-se ao caminhar e no contato com o além de si mesmo, com a alteridade e no respeito. Se, para entrar no mar devemos respeitar o movimento das ondas, se para apanhar a fruta devemos esperar que amadureça, se devemos aguardar o momento certo da borboleta sair do casulo, como não obedecer e respeitar este ritmo natural? Cada ser, tem seu ritmo segundo sua natureza, tem, em suas células, segundo Santo Agostinho, em sua substância originária, registrados e inscritos em sua índole, pelo Criador, seus direitos próprios e exclusivos, que devem ser reconhecidos e respeitados, no conjunto de toda a criação. Cada ser, segundo sua espécie: o mineral, seu direito natural de mineral; o vegetal, seu direito natural de vegetal; o animal, seu direito natural de animal, o racional, seu direito à transcendência e humanização. Eis a saída, entender e respeitar o direito, segundo a natureza e espécie de cada um. È próprio do ser cachorro, levantar a perninha e fazer pipi no poste mas, e impróprio ao racional fazer o mesmo, entretanto, numa emergência, pode o homem usar o mesmo estratagema e por quê não? Cada um segundo sua espécie "...Homem e Mulher, Ele os criou". (Gen1,27)
O direito é co-natural com o ato de existir, o ato de viver, crescer, frutificar, se perpetuar, morrer e se transformar.O Homem é o único ser que sabe e pode mudar por sua condição histórica, o único capaz de conduzir seu processo de mudança. Cada passo evolutivo se depara com novas necessidades, que exigem novas respostas de adequação. Á cada nova situação, uma nova resposta. Este movimento: à cada necessidade, uma resposta, e à cada resposta, uma criatividade, constituem em si processo de surgimento de direitos e obrigações que sendo reconhecido e aceitos, vão se institucionalizando.Precisamente porque o direito tem a ver com a vida, ele evolui, se ajusta às novas situações que a vida desencadeia sem cessar. Direito, entendido como um conjunto de normas e leis, organizações e decretos, que passam a regularizar a vida dos indivíduos de uma Comunidade. Normas jurídicas que nascem e se transformam à cada necessidade básica n da Comunidade e do evoluir humano. Assim, a lei ao mesmo tempo que é perene, é dotada de flexibilidade e pode ser revogada, se a Comunidade assim o entender. Toda lei promulgada, quer preservar a vida, os valores, o patrimônio, a identidade da Comunidade que a decretou. A lei não é feita para o indivíduo ela é feita e dada à Comunidade. Exatamente porque nasce no seio e das necessidades desta Comunidade é sempre necessária e boa e tem força vinculadora, obrigando todos os Membros da Comunidade a obedecê-la. Quem a desrespeitar, será punido com a retratação, o ressarcimento dos danos causados à Comunidade. Neste caso, o modo de agir da pessoa é que interessa ao direito, sua capacidade inata e consciente de se relacionar com as outras pessoas e coisas nas distintas fases, circunstâncias e ambientes que a cercam. Entram em ação sua inteligência criativa e flexível, sua capacidade de analisar, ponderar, avaliar, optar e decidir.Somente o homem é capaz de elaborar leis para norteá-lo, no exercício da liberdade, na vida e conduta social. .A consciência da alteridade, do outro, é a fronteira, o limite na prática e no exercício de direitos e deveres da vida, em sociedade.
Nem sempre a Lei é elaborada com a participação efetiva de todos os seus Membros, nestes casos a Comunidade se faz presente através de seus legítimos Representantes, designados por ela mesma. Quem promulga a Lei é sempre a Autoridade que representa a Comunidade e esta concede um tempo de vacância, para o conhecimento da Lei a fim de que todos, conhecendo-a, à ela se ajustem. Após este tempo a Lei entra em vigor e todos estão, vinculados. Não haverá depois desculpas para os que ignorarem o teor e força desta Lei. Todos os que gozam de autoridade sobre outros são responsáveis de dar a eles o conhecimento da nova Lei. Obedecendo, cada um e todos sabem que estarão colaborando para o Bem Comum e a felicidade geral da comunidade. Cada um se obriga a si mesmo, diante do bem maior.O bem individual e social não são contraditórios entre si, no entanto criam tensões conforme a natureza das regras e normas em questão.O indivíduo estará sempre em face do grupo. E o grupo deverá sempre levar em conta o indivíduo. Mesmo quando as normas de direito servem de proteção a bens individuais elas têm foco no bem comum geral que é sempre o critério na elaboração das Leis. O Homem, no contexto social, não pode prescindir do Direito e este só terá sentido enquanto atender às reais e justas necessidades dos indivíduos que integram cada Comunidade.
O Estado se organiza de tal forma que atende a pessoa desde antes de seu nascimento até depois de sua morte. Cabe a ele Estado, respaldar os direitos fundamentais da pessoa, tutelar e salvaguardar o bem comum, impedindo o livre arbítrio de grupos ou indivíduos.Dificilmente um grupo humano se entende como grupo, sem um certo corpo de direito, que se dá como defesa, com maior ou menor grau de elaboração,de consciência e sistematização. O Estado cria instituições que asseguram esses direitos e essa defesa, garante o bem estar terreno, o progresso dos seus cidadãos com serviços que atendem a área da saúde, habitação, lazer, educação, transporte, trabalho, economia. São deveres inerentes ao Estado, junto do cidadão e este não abre mão destes direitos fundamentais. Muitas vezes a história registrou o não cumprimento desta obrigação pelo Estado e a falta de cobrança da Comunidade. Isto abriu brechas para serviços de suplência e acomodou o Estado. Quantas Igrejas, Ongs, Voluntariados ocuparam estes espaços vazios para virem em socorro da pessoa aviltada em seus direitos básicos. Quantos profetas deram suas vidas na defesa desta causa! Não falamos do supérfluo, falamos do indispensável para a dignidade humana. Exigir do Estado é um direito de todos, como é um dever de todos, colaborar e aprimorar esta sua missão.
Se ao Estado cabe atender ao plano terreno, à Igreja cabe atender no plano da transcendência. Certo seria e lindo, se houvesse inteiração, complementariedade na prestação destes serviços. Também esta é nossa vocação e desafio. A nova civilização aguarda ansiosamente essa libertação, "la redenção dos Filhos de Deus"(Rm.8,22). Um caminho árduo, difícil, inédito e possível, pois Deus Trindade já se encarnou, já redimiu e santifica os que permitem e aceitam sua intervenção. O chamado universal à santidade é feito à todas as pessoas do universo: "... chamados a ser santos,com todos os que em qualquer lugar invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso".(I Cor.1,2-3) A Igreja, Povo de Deus, pelos "christifideles", os batizados, participa do mùnus sacerdotal, régio e profético de Cristo e continua, no tempo, no aqui e agora da história, essa sua missão que Deus lhe confiou para cumprir no mundo: a santificação de todos, o anúncio da salvação.. Essa Igreja de Jesus Cristo, constituída e organizada neste mundo, como sociedade, subsiste na Igreja Católica, governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele.(cf.cân.204). A comunhão plena com essa Igreja visível, se expressa pelos vínculos da mesma fé, dos mesmos sacramentos e regime eclesiástico.(Cf. cân.205).Não entramos aqui no mérito da Igreja Corpo Místico de Cristo, que transcende o jurídico.
Os dois direitos, tanto o civil como o canônico buscam a justiça e o bem comum. A diferença está que um busca o bem comum temporal e o outro o bem comum sobrenatural dos fiéis. A comunidade política e as confissões religiosas estão ambas a serviço dos mesmos homens, que são seus sujeitos tanto em nível individual, como comunitário. São distintas e se complementam, cada uma tem seu princípio de autonomia e deve relar por ele. A Constituição dogmática "Gaudium et Spes" é clara quando afirma essa autonomia da Igreja: "A Igreja, em razão de sua finalidade e competência, não se confunde de nenhum modo com a comunidade política nem está ligada a nenhum sistema político determinado"( GS76); "A missão própria que Cristo confiou à sua Igreja não pertence à ordem política, econômica ou social: seu fim é de ordem religiosa...(GS 42) Tem a mesma clareza o documento na defesa do princípio de cooperação mútua: "A comunidade política e a Igreja são independentes entre si e autônomas. Ambas,porém, embora por títulos diferentes, estão a serviço da vocação pessoal e social dos mesmos homens. Tanto mais eficazmente executarão para o bem de todos estes serviços quanto melhor cultivarem entre si a sadia cooperação, considerando também as circunstâncias de tempo e lugar. O homem, pois, não está restrito apenas à ordem temporal, vivendo na história humana, conserva integralmente a sua vocação eterna"(GS 19).Esse princípio de cooperação abrange um campo imenso em matérias de interesse público. Reconhecemos que algumas comunidades eclesiais promovem atividades para as quais o Estado costuma não estar tão bem aparelhado. Sem querer privilégios, a Igreja e as outras confissões religiosas poderiam exigir um reconhecimento civil e receber maiores subsídios, pois, a Religião é um direito social a ser administrado de forma racional e eficiente pelo estado..
Cada sociedade tem o seu direito: "ubi societas ibi iu".e direito é direito porque é justo:"ius quia iustum est". As vezes o máximo da justiça pode não ser o máximo da caridade, por isso, na Igreja busca-se evitar o arbítrio. Um instrumento próprio chamado equidade canônica, vem adocicar a dureza da Lei, pela misericórdia, na hora de aplicação das pena. Isso, não para enfraquecer a força da Lei mas para ajudar o Fiel a retornar e re-assumir o caminho do bem, por ele deixado. A salvação, a santidade, a vida em abundância, a conversão é o objetivo do Direito na Igreja. Na etimologia da palavra "ius", em latim, e "yós" do vèdico, vemos o sentido de: salvação, defesa contra o mal. Na palavra "directum" vemos:o que se amolda à reta e "kánon"quer dizer regra..A definição de Direito Canônico:"Conjunto de leis feitas pela suprema autoridade eclesiástica, Papa ou Concílio Ecumênico, sob a autoridade do Papa, pelas quais se constitui e se rege a Igreja católica e se ordenam as ações dos fiéis para o fim da mesma Igreja", não deixa dúvidas da capacidade interna da Igreja de autogovernar-se para a consecussão de seu fim.De direito e de fato tem a Igreja auto-suficiência e plenitude jurisdicional, mesmo se reconhece o Direito Civil como uma fonte subsidiária."As leis civis, às quais o direito da Igreja remete, sejam observadas no direito canônico com os mesmos efeitos, desde que não sejam contrárias ao direito divino e não seja determinado o contrário pelo direito canônico".(cf.cân 22) Existem matérias próprias do Estado, que a Igreja respeita e existem outras que são mixtas e requerem cooperação racional e eficiente.
A verdadeira Lei é vista na ótica da defesa dos direitos dos mais fracos da Comunidade, atende a todos, mas a partir dos menos favorecidos, dos mais fragilizados. Este é outro traço divino da lei. As vezes, numa controvérsia o lado mais fraco é o do súdito, outras vezes a autoridade pode ser o lado vulnerável. Um pai manda, um filho obedece e pronto. Mas, quando um pai não sabe mandar, ou manda mal, um filho pode desobedecer, sobretudo se o que lhe é pedido ou ordenado está contra o direito natural ou direito divino.A criança manifesta sempre grande sensibilidade à justiça, até mesmo mais que à verdade, tem discernimento frente ao adulto que a engana. Uma vez estabelecidas as regras, não tolera que se modifique o que foi combinado. Aceita tranqüilamente as sanções, quando extrapola normas. Quanto as sanções exite uma diferença radical entre o direito civil e o canônico, devido a natureza de cada um. No direito civil , a sanção entra em cena assim que o crime acontece, nenhum arrependimento minimiza a gravidade ou durabilidade da pena prevista. Já a pena canônica cessa assim que o pecador se arrepende e retoma seu caminho de salvação. Somos sempre a parte mais fraca e objetos de sua misericórdia divina. Este é talvez o traço mais sublime e divino da Lei canônica, a misericórdia e o respeito sagrado às diferenças, amostra gratuita do amor imensurável do Criador por sua Criatura.
Quando o Papa João Paulo II, em 25 de janeiro de 1983, promulgou o novo Código de Direito canônico através da Constituição Apostólica,"Sacrae Disciplinae Leges"disse: "Queira Deus que a alegria e a paz, com justiça e obediência, façam valer este código, e o que for determinado pela Cabeça, seja obedecido no Corpo...Determinamos que de ora em diante tenha força de lei para toda a Igreja Latina, e o entregamos, para ser observado, à guarda e vigilância de todos a quem compete...Exortamos, pois, todos os diletos filhos a que observem com sinceridade e boa vontade as normas propostas, na firme esperança de que floresça a solícita disciplina da Igreja e de que, assim, sob a proteção da Beatíssima Virgem Maria, Mãe da Igreja, se promova mais e mais a salvação das almas." Os Fiéis entendem e aceitam as leis da igreja como canais de graça e salvação. A nova eclesiologia do Vat.II trouxe um novo Direito para a Igreja Povo de Deus. O novo Código não vem de forma alguma, "substituir na vida da Igreja ou dos Fiéis, a fé, a graça, os carismas, nem muito menos a caridade. Pelo contrário, sua finalidade é, antes, criar na sociedade eclesial uma ordem que, dando primazia ao amor, à graça e aos carismas, facilite ao mesmo tempo seu desenvolvimento orgânico na vida, seja da sociedade eclesial, seja de cada um de seus membros". Claro que após 20 anos do Vat II, quando é promulgado o Código e depois da existência do mesmo, por mais de vinte anos já sentimos novas necessidades eclesiais que requerem novas e adaptadas respostas.O magistério da Igreja se encarrega de orientar o Povo de Deus, até um próximo Concílio Ecumênico.
Finalizando este primeiro artigo de reflexão esperamos ter oferecido luzes no entendimento e importância do direito em nossas vidas e sua dimensão sacramental de solidariedade e comunhão. Seremos livres à medida que soubermos ver as leis como recursos de liberdade e santidade. "Que meus lábios publiquem o louvor, pois tu me ensinas os teus estatutos. Que minha língua cante a tua promessa, pois teus mandamentos todos são justiça.Que a tua mão venha socorrer-me, pois escolhi teus preceitos". (Sl.119,171-172).

Irmã Mercedes Darós- (IPGap)- Canonista- São Paulo- Brasil-