Os tempos que vivemos carecem sobremaneira de relações trinitárias. Com efeito, Deus, segundo a doutrina cristã, é Um em Três. Assim, é impossível que haja entre as Pessoas divinas um "relacionamento neurótico". Dar-se-ia o aludido jaez de comportamento, se o Pai mirasse para o Filho, e o Filho mirasse para o Pai, in secula seculorum. Sem embargo, tanto o Pai quanto o Filho olham para o Espírito Santo, a terceira Pessoa da santíssima Trindade. Neste "momento", os dois, o Pai e o Filho, não se contemplam mutuamente, porquanto estão voltados para um terceiro.
Deus é amor. Só pode ser amor, porque é interação entre as três Pessoas. Assim, criando-nos à sua imagem e semelhança, dotou-nos da capacidade de amar. Todavia, este dom magnífico fora antanho conspurcado pelo pecado original, sendo diariamente aviltado pelas nossas faltas presentes, chamadas de pecados atuais. Internamente falando, Deus vive e cria o amor. Na sua manifestação para com o ser humano, consoante a ensinança do bispo de Hipona, Deus derrama caridade. Eis, pois, o singular discrímen entre amor e caridade. Neste diapasão, ser descaridoso ou caridoso é problema antropológico vital. Não se trata de uma virtude simplesmente. Daí se extrai a relevância da teologia para o direito, bem como para a cultura, de um modo amplo, vez que são as normas jurídicas e a cultura que forjam a estrutura da sociedade, comunicando os valores nos quais os cidadãos se escoram.
O crente que se puser a perscrutar os meandros da vida íntima de Deus, através da oração, do estudo e da meditação, certamente perceberá a ocorrência de uma mudança copérnica na sua vida, vale dizer, na sua cosmovisão. Passará a entabular relacionamentos de grande qualidade, prenhes de intensidade e semanticamente ricos. Infelizmente, a violência à qual assistimos, quer parta ela das instituições (péssima distribuição de renda, justiça morosa, desemprego etc.), quer proceda ela das pessoas individualmente (egoísmo, rusgas por qualquer dá cá uma palha, assassínios etc. ), é, em certa medida, fruto de uma compreensão enviesada de Deus. É o Pai olhando para o Filho, num arrostar infinito, num querer-bem que facilmente degeneraria em narcisismo. Nesta dualidade espelham-se os que só se preocupam com sua família, com seus filhos, enfim, aqueles que fazem uso extremo e patológico do pronome possessivo. Não há um terceiro para essas pessoas. O terceiro que bate à porta, pedindo comida, é sumariamente ignorado.

Edson Luiz Sampel