Amigas e amigos.

Estou a preparar uma resenha de um livro antigo de Leonardo Boff. Ainda não terminei. O livro é simplesmente delicioso. Passo-lhes a primeira parte do meu trabalho, a fim que de vocês a degustem com prazer.

Prestem atenção, principalmente, na narração da morte do pai de Boff.

Abraços.


Edson L. Sampel
Resenha do livro "Os sacramentos da vida e a vida dos sacramentos", de Leonardo Boff.


Não é por ser um livro da lavra de Leonardo Boff, mas a obra é excelente. Sem sombra de dúvida, Leonardo Boff, com sua habitual mestria, enfocou o tema sacramentos de forma bastante clara e vivificante. Fê-lo em consonância com o mais lídimo magistério, contudo soube ser original e comunicar a doutrina sacramental com profundidade.
Eu já havia lido o livro anos atrás. Impressionou-me sobremaneira, como impressiona qualquer texto que saia da pena deste brilhante teólogo. Aliás, a acuidade de Boff é algo maravilhoso. Ele é capaz de enxergar pontos que ninguém nunca tinha sequer vislumbrado.
No primeiro capítulo, Boff chama a atenção do leitor exatamente para a sacramentalidade que está presente no dia-a-dia: "as coisas começam a falar" (p. 9). Afirma o eminente pensador: "Viver é ler e interpretar" (p. 9, in fine). O franciscaníssimo escritor conclama o leitor a ver além das aparências, a perscrutar a mensagem sacramental. Neste diapasão, a primeira idéia a despontar é de que os sacramentos constituem uma realidade maior que os tradicionais sete sacramentos. Cita o exemplo do chimarrão, chá típico das populações sulistas, e demonstra quão sacramental é o gesto de tomar a aludida bebida na companhia dos amigos. Ouçamos Boff: "Quando alguém nos visita, no sul do Brasil, oferecemos-lhe logo uma cuia de chimarrão quente. Sentamo-nos comodamente ao fresco. Tomamos da mesma cuia e chupamos da mesma bomba. Toma-se, não porque se tem sede ou pelo gosto do amarguinho, ou porque este "faz milagre e livra a gente de qualquer indigestão." A ação possui um outro sentido. É uma ação ritual para celebrar o encontro e saborear a amizade. O centro das atenções não está no chimarrão, mas na pessoa. O chimarrão desempenha uma função sacramental." (p. 11, in fine). Que gostoso ouvir estas palavras de Boff! Ele consegue nos fazer presenciar a própria ação sacramental. No exemplo em apreço, a ênfase não está no chá; encontra-se, isto sim, na amizade, na fraternidade que reúne os comensais. Esta alegria é veiculada pela ação de tomar chimarrão.
Boff passa a fornecer outras exemplificações, todas deliciosas de ler. No capítulo II, fala da caneca. Aquele utensílio doméstico que nos remete a épocas tão antigas, a situações de alegria e plena realização da personalidade. Diz que a caneca vista de fora, com os óculos do cientista, é tão-somente um objeto de louça ou de ferro, porém, com os olhos da fé sacramental, a mesma caneca aquire uma importância inefável: " A caneca fala da história da família que ela sempre acompanhou, na vida e na morte. Ela foi entrando cada vez mais na família. No final era um filho a mais cercado de carinho. E hoje está lá ainda a falar e a relembrar na fidelidade e na humanidade de servir a água que agora ficou doce, fresca e boa por causa da caneca...Essa é a visão interior da caneca. Foi o relacionamento havido com ela que a fez ser um sacramento familiar." (p. 19). No capítulo III, o autor discorre sobre o sacramento do toco de cigarro. Estranho. Hoje em dia, graça uma acirrada campanha contra o fumo, despersuadindo os tabagistas de continuarem no vício. Sem embargo, o cigarro é outrossim romântico. Faz reminiscência a épocas longínquas ou a um ente querido que faleceu. Nesta parte do livro, Boff narra uma experiência pessoal. Paga a pena ler o texto novamente: "Era o dia 11 de agosto de 1965. Munique, na Alemanha. Lembro-me bem: lá fora as casas aplaudiam o sol vigoroso do verão europeu; flores multicores explodiam nos parques e acenavam ridentes das janelas. São duas horas da tarde. O carteiro me traz a primeira carta da pátria. Ela vem carregada de saudade deixada pelo caminho percorrido. Sofregamente abro-a. Todos de casa escreveram. Parece quase um jornal. Paira um mistério: "Já deves estar em Munique quando leres estas linhas. Iguais a todas as outras, esta carta, embora diferente das demais, te traz uma bela mensagem, uma notícia que, vista sob o ângulo da fé, é deveras alvissareira. Deus exigiu de nós, há poucos dias, um tributo de amor, de fé e de penhorado agradecimento. Ele desceu no seio da nossa família. Olhou-nos um a um e escolheu para si o mais perfeito, o mais santo, o mais maduro, o melhor de todos, o mais próximo d'Ele, o nosso querido papai. Querido, Deus não o tirou de nós, mas deixou-o mais ainda entre nós. Deus não levou papai só para si, mas deixou-o mais ainda para nós. Ele não arrancou papai da alegria de nossas férias, mas plantou-o mais fundo na memória de todos nós. Deus não furtou papai da nossa presença, mas deu-o mais presente. Ele não o levou, mas o deixou. Papai não partiu, mas chegou. Papai não foi, mas veio para que papai fosse mais pai ainda, para que papai estivesse presente hoje e sempre, aqui no Brasil com todos nós, contigo na Alemanha, com o Ruy e o Clodovis em Lovaina e com o Waldemar nos Estados Unidos." (p. 22, negritos meus). Lindo! Comovente! Meus olhos estão a lacrimejar em virtude de um motivo particularíssimo. No dia seguinte, Boff examina melhor o envelope da missiva e observa a presença de um toco de cigarro. "Fora o último que havia fumado, momentos antes de um enfarte do miocárdio o haver libertado definitivamente desta cansada existência." (p. 22). E Boff define sacramento: "Toda vez que uma realidade do mundo, sem deixar o mundo, evoca uma outra realidade diferente dela, ela assume uma função sacramental. Deixa de ser coisa para se tornar um sinal ou um símbolo. Todo sinal é sinal de alguma coisa ou de algum valor para alguém. Como coisa pode ser absolutamente irrelevante. Como sinal pode ganhar uma valoração inestimável e preciosa. Tal o toco de cigarro de palha que, como coisa, é lançado ao lixo. Como símbolo é guardado qual tesouro inapreciável." (p. 23).