23º DOMINGO DO TEMPO COMUM. 

 

A sabedoria nunca é conquistada para sempre. Sb. 9 (1ª leitura) é a prece da Salomão pela sabedoria; a segunda parte (v. 13-19) explica quanto ela é indispensável. Mas o mundo de hoje parece carecer dela mais do que Salomão. Nem mesmo respeita suas próprias fontes de subsistência, sacrificando tudo à manutenção de obscuros poderes e lucros, com a cumplicidade de praticamente todos, deixando-se envolver no jogo da competição e do consumo...

A sabedoria ensina a dar a tudo seu devido lugar, a ponderar o que é mais e o que é menos importante. Isso pode conduzir a conclusões que, aos olhos de pessoas superficiais, parecem loucura. As exigências do seguimento de Jesus parecem loucura:“Odiar (= não preferir) pai e mãe, mulher, filhos, irmãos e irmãs” (Lc. 14,26), por causa de Cristo e seu evangelho, não é isso uma loucura? Não, diz Lucas (evangelho). É a conseqüência da sabedoria cristã, da ponderação a respeito do investimento necessário para o Reino de Deus. Começar a construir a torre sem o necessário capital é que é loucura, pois todo mundo ficará gozando da gente porque não conseguiu concluir a obra! A alusão à torre de Babel, símbolo da vaidade e confusão humana, é evidente. O homem sábio faz seu orçamento: decide quanto ele vai investir. No caso do cristão, o único orçamento adequado é o do investimento total, já que se trata do supremo bem, sem o qual os outros ficam sem sentido. Ainda bem que os recursos são inesgotáveis.

A sabedoria cristã consiste em ousar optar radicalmente pelo valor fundamental, mesmo se isso exige uma escolha dolorosa contra pessoas muito queridas, realidade que se repetia diariamente na Igreja do tempo de Lc. Estas palavras foram dirigidas às “grandes multidões” que seguiam Jesus (Lc. 14,25), e não só a monges e ascetas. Além disso, formam a seqüência de exortação ao convite gratuito e à parábola do grande banquete, em que Jesus ensina a dar a preferência às pessoas “não gratificantes” em vez dos familiares e amigos (cf. dom. pass.). Assim, “não preferir” seus familiares se pode referir, concretamente, a duas realidades: a perseguição, que obriga o cristão a preferir o Cristo acima dos laços de parentesco e até acima da própria vida (sentido primeiro); mas também a preferência, por causa do Evangelho, por categorias de pessoas pouco estimadas, excluídas, às custas do círculo social costumeiro.

Ouve-se, em nosso ambiente, muitas vezes, a observação de que é preciso ter “bom senso” em questões de justiça e direito. Será que não se chama de bom senso o que é apenas medo? Quando é claro que o amor de Cristo está em jogo, a sabedoria cristã exige um investimento radical e estratégias para lhe abrir espaço. Porém, radicalidade não é imprudência. É liberdade frente àquilo que nos pode desviar do que é prioritário. A sabedoria cristã nos ajuda a estabelecer as opções preferenciais certas. Ora, para não perder tudo, é preciso realizar as opções sabiamente feitas. Quem acha que seguir Cristo é fundamental, deve fazê-lo, custe o que custar. Portanto, o sábio cristão não é o sofista brilhante, que explica tudo, sem jamais se comprometer. É o homem que, ao mesmo tempo lúcido e convicto, investe tudo no que julga ser o sentido último da existência e da História, à luz na fé em Cristo Jesus. O sábio não é aquele que hesita, quando se trata de saltar, mas aquele que salta; o que hesita é que cai...

Para Filêmon, o homem de bem da cidade de Éfeso, amigo pessoal de Paulo, o bilhete que seu escravo Onésimo trouxe consigo, ao voltar de uma escapada até a prisão de Paulo, deve ter parecido loucura (2ª leitura). Porém, é a mais pura sabedoria cristã. Onésimo fugiu de Filêmon, para assistir a Paulo na prisão. Paulo o batizou. Agora não mais precisando dele, o devolve a Filêmon, porque comercialmente falando, é sua propriedade (Paulo ainda não pensava numa sociedade sem escravidão; ou não achava muito importante, por causa do curto prazo da Parusia: cf. 1Cor 7,20-23). Mas, espiritualmente falando, “em Cristo”, ambos, Onésimo e Filêmon, pertencem a uma nova realidade, em que não há mais senhor nem escravo, mas somente irmãos em Cristo e filhos do Pai (cf. Gl 3,28); e filhos também de Paulo, que a ambos gerou na fé (batizou-os). Portanto, Filêmon acolhe seu escravo não mais como escravo, mas como irmão, como se acolhesse o próprio Paulo.

Os cristãos e as estruturas sociais

"Se Deus só serve para deixar tudo como está, não precisamos dele”; palavra de uma agente de educação popular. O Deus que é apenas o arquiteto do universo, mas fica impassível diante da injustiça dos habitantes de sua arquitetura, não tem relevância alguma. O cristianismo serve ou não para mudar as estruturas da sociedade?

São Paulo tinha um amigo, Filêmon.

Este – como todos os ricos de seu tempo – tinha escravos, que eram como se fossem as máquinas de hoje. Um dos escravos, sabendo que Paulo tinha sido preso, fugiu de Filêmon para ajudar Paulo na prisão. Paulo o batizou (“o fez nascer para Cristo”).

Depois mandou-o de volta a Filêmon, recomendando que este o acolhesse, não como escravo, mas como irmão... Mais: como se ele fosse o próprio Paulo (2ª leitura).

Essa história é emocionante, mas nos deixa insatisfeitos. Por que Paulo não exigiu que o escravo fosse libertado, em vez de acolhido como irmão, continuando como escravo? Aliás, a mesma pergunta surge ao ler outros textos do Novo Testamento (1Cor. 7,21; 1Pd. 2,18). Por que o Novo Testamento não condena a escravidão?

A humanidade leva tempo para tomar consciência de certas incoerências, e mais tempo ainda para encontrar-lhes remédio. A escravidão, naquele tempo, era uma forma de compensação de dívidas contraídas ou de uma guerra perdida. Imagine que se resolvesse desse jeito a dívida externa do Brasil! Seríamos todos vendidos (se já não é o caso...) Antigamente (?), a escravidão fazia parte da estrutura econômica. Na Idade Média, com os numerosos raptos praticados pelos piratas mouros, surgiram ordens religiosas para resgatar os escravos, até tomando o lugar deles. Mas ainda na época moderna, a Igreja foi conivente com a escravidão dos negros. A consciência moral cresce devagar, e mudar alguma coisa nas estruturas é mais demorado ainda, porque depende da consciência e das possibilidades históricas. As estruturas manifestam só aos poucos sua injustiça, e então leva séculos para transformá-las.

Porém, a lição de Paulo é que, não obstante essa lentidão histórica, devemos viver já como irmãos, vivenciando um espírito novo, que vai muito além das estruturas vigentes e que – como uma bomba-relógio – fará explodir, cedo ou tarde, a estrutura injusta. Novas formas de convivência social, voluntariados dos mais diversos tipos, organismos não-governamentais, pastorais junto aos excluídos – a criatividade cristã pode inventar mil maneiras para viver aquilo que as estruturas só irão assimilar muito depois.

Johan Konings - "Liturgia dominical" - www.franciscanos.org.br

 

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