Em 30 de abril de 2019, um grupo de 19 católicos publicou, em inglês, a “Carta Aberta aos Bispos da Igreja Católica” (“Open Letter to the Bishops of the Catholic Church”)

(https://www.documentcloud.org/documents/5983408-Open-Letter-to-the-Bishops-of-the-Catholic.html.) Trata-se de denúncia em face do papa Francisco, acusado de heresia. O texto, como os próprios signatários esclarecem, é uma acusação formal: “Acusamos o papa Francisco do delito canônico de heresia”; lê-se logo nas primeiras linhas.

Pois bem. Cuida-se de petição inepta, processualmente falando. Nenhum juiz acolheria denúncia tão malformulada. Em suma, os 19 subscritores não conseguiram provar que o papa Francisco perpetrou qualquer heresia. O ônus da prova incumbe a quem alega! Os acusadores falharam no desiderato de demonstrar o cometimento do delito canônico. Se não, vejamos.

Consta da denúncia: “Acusamos o papa Francisco de, através de palavras e atos, publica e pertinazmente, ter demonstrado sua crença nas seguintes proposições que contradizem a verdade divinamente revelada (para cada proposição, apresentamos uma seleção de ensinamentos escriturísticos e magisteriais que a condena como contrária à revelação divina).” Arrolam-se alguns ditos e comportamentos atribuídos ao santo padre, seguidos de formulações doutrinarias.

Demos alguns exemplos. O papa Francisco teria asseverado o seguinte: “Um cristão pode ter total conhecimento da lei divina e, voluntariamente, optar por desobedecê-la em uma matéria grave, mas não se pôr em estado de pecado mortal, por causa desta ação”. Os algozes do bispo de Roma citam, entre outros documentos, o Concílio de Trento: “Quem disser que o homem justificado, por mais perfeito que possa ser, não é obrigado a observar os mandamentos de Deus e os da Igreja, mas está obrigado apenas a crer, como se o evangelho fosse meramente promessa de vida eterna sem a condição do cumprimento dos mandamentos, seja anátema”.

Os denunciantes não explicam por que a frase acima, atribuída ao papa Francisco, consiste em heresia, ou seja, nega alguma verdade católica. Em nenhum momento da carta-denúncia, os assinantes estabelecem liame entre as asserções do papa e a alegada contrariedade ao magistério do Concílio de Trento. Em outras palavras, não se produziu prova alguma em detrimento do papa Francisco. Apenas se declinam itens doutrinários, porém não se argumenta como os ditos do papa vulneram esta ou aquela proposição da fé. Os autores da denúncia não arrazoaram; simplesmente desconsideraram a lógica elementar e jurídica.  No caso excogitado como exemplo, é óbvio que o santo padre se reporta ao conhecidíssimo princípio do mal menor, inexistindo quaisquer máculas na sentença presumivelmente pronunciada por ele.

A carta aberta é longa, verborrágica e balofa. Repetimos: não prova absolutamente nada.

Mais um exemplo. Transcrição da Amoris Laetitia, n. 295: “Nesta linha, são João Paulo II propunha a chamada ‘lei da gradualidade’, ciente de que o ser humano ‘conhece, ama e cumpre o bem moral segundo diversas etapas de crescimento’. Não é a ‘gradualidade da lei’, mas gradualidade no exercício prudencial dos atos livres em sujeitos que não estão em condições de compreender, apreciar ou praticar plenamente as exigências objetivas da lei.”

Caluda! Os detratores do papa não proferem uma palavra sequer para provar a heresia deste excerto da exortação apostólica. Nem tampouco o contrapõem a algum ensinamento doutrinário, como procederam na primeira parte da carta!  

Último exemplo, pois nosso espaço é exíguo. Mais uma citação da Amoris Laetitia, entre as inúmeras que a malfadada denúncia contém: “Não se pode mais simplesmente afirmar que os que se encontram em alguma situação ‘irregular’ vivem em estado de pecado mortal e privados da graça santificante. Há mais aqui do que mera ignorância da regra. Um sujeito pode conhecer muito bem a regra, e mesmo assim ter muita dificuldade em compreender ‘os valores inerentes a ela ou estar em certa situação concreta, a qual não permita agir diferente ou decidir sem novo pecado (sic)” (n. 301). Primeiramente, observe-se que o papa, na Amoris Laetitia, redigiu “sem nova culpa”, e não sem novo “pecado”. Não se sabe se os inquisidores do sumo pontífice cochilaram ou adrede conspurcaram a redação oficial...

Novamente, silêncio total! Que é da heresia entranhada nos dois excertos supramencionados? Não se diz o porquê. Não se explana eventual erro da proposição papal.

Absurdo dos absurdos dessa carta aberta, que na verdade é apenas aleivosia ao vigário de Cristo, é querer incriminar Francisco por causa dos prelados que ele nomeou! Pasmem! Então, ad argumentandum tantum, se o papa escolheu alguém que ulteriormente cometeu  deslize grave, a culpa recai sobre o papa e, mais, o papa é herético por esse motivo... Risível, portanto, o imenso rol de eclesiásticos (cardeal Calcagno, cardeal Coccopalmerio, cardeal Cupich etc.), a pretensamente corroborar a heresia de Francisco, por via oblíqua!

Finalmente, lamentamos tanto desrespeito ao santo padre, “o doce Cristo na Terra”. Reiteramos que a mencionada carta aberta, carente de argumentos, como os dubia, não exibe prova nenhuma de heresia do papa. Antes, veicula o famigerado ramerrão dos que engendram hermenêutica anquilosada, ideologicamente asfixiante do depósito da fé.

Há católicos que não estão interessados em pôr em prática o amor evangélico, conforme o papa Francisco tem estimulado diuturnamente (Ex.: cristãos da Europa, recebamos os refugiados da África!). Certos católicos, por desgraça, anelam o “catolicismo” umbrático das conveniências. Reflitamos sobre este pensamento: tudo que são João Paulo II e Bento XVI ensinaram o papa Francisco está pedindo que os católicos e homens de boa vontade coloquem em prática! Rezemos pelo papa Francisco!

 

Edson Luiz Sampel

Professor da Faculdade de Direito Canônico São Paulo Apóstolo

(da Arquidiocese de São Paulo).

Consócio 108/91.