X DOMINGO DO TEMPO COMUM – B – O pecado de Adão e Eva

Mc 3,20-35.

Caríssimos irmãos e irmãs

O Evangelista São Marcos ressalta na perícope evangélica deste domingo que os adversários de Jesus a criticam suas atitudes e a salientam que a sua mensagem é contrária à doutrina oficial, isto é, a dos escribas e fariseus.  Eles alegam que o comportamento de Jesus não está de acordo com as sagradas tradições dos antigos por não respeitar o sábado, não estimular os seus discípulos a jejuar, por ser amigo dos pecadores e por não observar as normas que proíbem contatos com pessoas impuras.  Muitos o consideram um herege (Jo 8,48.52), e o acusam ainda de expulsar o demônio pelo poder de Belzebu, o Príncipe dos demônios.  A palavra Belsebu - seria interesante recordar - vem do nome de um deus filisteu de Acaron, cujo nome era “Baal das moscas” - Baal Zebud.  A mesma palavra foi deformada pelos judeus, e ficou Beelzebul, que significa “o Senhor das esterqueiras”. De qualquer maneira é um nome depreciativo com que os israelitas chamavam o chefe dos espíritos malignos.  Como está no evangelho, os escribas insistem em dizer que Jesus estaria expulsando os demônios pelo poder de Belzebu.  Uma colocação inconveniente, à qual Jesus responde ser impossível um demônio o próprio demônio.

Jesus se dirige a eles e esclarece: Satanás, por sua própria natureza, é inimigo do homem, é homicida: tudo o que ele faz é contra a vida e a felicidade do homem.  Ora, tudo aquilo que Jesus realiza é exatamente o contrário: ele socorre o homem e o recupera; restitui-lhe a saúde e comunica-lhe a vida.  Quanto à intervenção de seus parentes, Jesus explica que sua verdadeira família não é a do sangue, mas a da fé operante: os que fazem a vontade do Pai (v.35). Para poder fazer parte de sua família é preciso escutar a sua palavra e cumprir a vontade de Deus.

Neste horizonte neo-testamentário, meditemos em particular a primeira leitura que nos faz voltar ao livro do Gênesis (cf. Gn 2,4b-3,24), cujo objetivo é falar sobre a origem da vida e do pecado e tem uma finalidade teológica, que tenciona ensinar como o mundo e o homem apareceram, e nos diz em particular que na origem da vida está Deus e que na origem do mal e do pecado estão as opções erradas do homem. Trata-se, portanto, de uma página importante de catequese, que sempre devemos reler.

Em um primeiro momento o autor sagrado descreve a criação do paraíso e do homem e apresenta a criação de Deus como um espaço ideal de felicidade, onde tudo é bom e o homem vive em comunhão total com o Criador e com as outras criaturas.  Em um segundo momento é apresentado o pecado do homem e da mulher, mostrando como as opções erradas do primeiro casal humano influenciaram na sua comunhão com Deus, trazendo desequilíbrio para o próprio homem.  E finalmente, o texto apresenta o homem e a mulher confrontados com o resultado das suas opções e as consequências que daí surgiram para ambos e para as gerações vindouras.

Na perspectiva do texto do Gênesis, Deus criou o homem e a mulher para a felicidade.  Mas o homem que Deus criou livre e feliz fez escolhas indevidas e, com isto, introduziu na criação dinamismos de sofrimento e de morte.   Os personagens apresentados no texto são Deus, que “passeia no jardim à brisa do dia” (v. 8), e ainda Adão e Eva, que se esconderam de Deus por entre o arvoredo do jardim (v. 8).

O texto começa com uma pergunta do Criador a Adão: “Onde estás?” A resposta do homem já é uma confissão da sua culpabilidade: “Ouvi o rumor dos vossos passos no jardim e, como estava nu, tive medo e escondi-me” (v. 9-10). A vergonha e o medo são sinais de uma perturbação interior, de uma ruptura com a anterior situação de inocência, de harmonia, de serenidade e de paz. Como é que o homem chegou a esta situação? Evidentemente, desobedecendo a Deus e percorrendo caminhos contrários àqueles que Deus lhe havia proposto. A resposta do homem revela que ele tem consciência da sua culpa.

Depois desta constatação, a segunda pergunta feita por Deus ao homem é meramente retórica: “Terias tu comido da árvore, da qual te proibira de comer?” (v. 11). A árvore em causa é a “árvore do conhecimento do bem e do mal”, significa o orgulho, o prescindir de Deus e das suas propostas, o querer decidir por si só o bem e o mal, o pôr-se a si próprio em lugar de Deus, o reivindicar autonomia total em relação ao criador. A situação do homem, perturbado e em ruptura, é já uma resposta clara à pergunta de Deus. Ao desobedecer Deus, o homem fez a opção por um caminho de independência em relação a Deus. Daí a vergonha e o medo.

Ao defender-se, o homem acusa a mulher e, ao mesmo tempo, acusa veladamente o próprio Deus pela situação em que se encontra: “A mulher que me deste por companheira deu-me do fruto da árvore e eu comi” (v. 12). Adão representa a humanidade que esqueceu os dons de Deus e vê em Deus um adversário; por outro lado, a resposta de Adão mostra, igualmente, uma humanidade que quebrou a sua unidade e se instalou na falta de solidariedade, no ódio. Escolher caminhos contrários aos de Deus não pode senão conduzir a uma vida de ruptura com Deus e com os outros irmãos.

Em seguida, a mulher se defende: “A serpente enganou-me e eu comi” (v. 13). Entre os povos cananeus, a serpente estava ligada aos rituais de fertilidade e de fecundidade. Os israelitas deixavam-se fascinar por esses cultos e, com frequência, abandonavam o Senhor Deus para seguir os rituais religiosos dos cananeus e assegurar, assim, a fecundidade dos campos e dos rebanhos. Na época em que o livro do Gênesis foi escrito, a serpente era, pois, o “fruto proibido”, que seduzia os crentes e os levava a abandonar a Lei de Deus. A “serpente” é, neste contexto, um símbolo literário de tudo aquilo que afastava os israelitas de Deus. A resposta da “mulher” confirma aquilo que até agora estava sugerido: a humanidade que Deus criou ignorou as suas propostas e enveredou por outros caminhos.

A serpente é um animal que passa toda a sua existência comendo o pó da terra. O autor vai servir-se deste dado para ilustrar a condenação radical de tudo aquilo que leva o homem a afastar-se de Deus para seguir outros caminhos.  A inimizade e a luta entre a “descendência” da mulher e a “descendência” da serpente, ressaltadas no texto, podem ser uma explicação do autor sagrado para o fato de a serpente inspirar horror aos seres humanos e todos procurarem “esmagar a sua cabeça”; mas a interpretação judaica e cristã viu nestas palavras uma profecia messiânica: Deus anuncia que um “filho da mulher”, o Messias, o Cristo Jesus, acabará com as consequências do pecado e inserirá a humanidade numa dinâmica de graça.  Nisto consiste a relação da primeira leitura com o Evangelho, onde Cristo é apresentado como o novo Adão, aquele que é capaz de expulsar o demônio tentador.

O autor sagrado, na verdade, não fala de um pecado cometido nos primórdios da humanidade pelo primeiro homem e pela primeira mulher; mas do pecado cometido por todos os homens e mulheres de todos os tempos. Ele está apenas a ensinar que a raiz de todos os males está no fato de o homem virar as costas para a lei de Deus e construir o mundo a partir de critérios próprios.

Um dos mistérios que mais questiona os nossos contemporâneos é o mistério do mal. Esse mal que vemos, todos os dias, torna sombria e assustadora esta nossa morada que é o mundo em que vivemos. Mas o mal nunca vem de Deus. Deus nos criou para a vida e para a felicidade e nos deu todas as condições para imprimirmos à nossa existência uma dinâmica de vida, de felicidade, de realização plena. O mal resulta das nossas escolhas erradas.  Quando o homem escolhe viver alheio às propostas de Deus constrói o sofrimento e passa a viver no pecado.  O tempo em que vivemos é um tempo de vigilância, pois a serpente continua a armar ciladas aos nossos calcanhares.

Saibamos dizer “não” ao pecado e ao erro.  E peçamos ao Senhor que nos ajude a combater o mal e nos faça fazer parte da sua família, ou seja, que possamos ouvir as suas palavras e colocá-las em prática todos os dias.  Assim seja.

 Anselmo Chagas de Paiva, OSB

Mosteiro de São Bento/RJ.