Jo 15,9-17

Caros irmãos e irmãs,

Chegamos ao sexto domingo do tempo pascal e o evangelho prescrito para este dia nos situa outra vez em Jerusalém, onde Jesus se encontra com os seus discípulos. As autoridades judaicas já haviam decidido pela morte de Jesus (cf. Jo 11,45-57). A morte na cruz é o cenário imediato. E Jesus está plenamente consciente disso. Os discípulos também já perceberam estes sinais e estão apreensivos. É neste contexto que podemos situar a última ceia de Jesus com os discípulos. Trata-se de uma “ceia de despedida” e tudo o que for dito por Jesus soa a “testamento final”. Ele sabe que vai partir para o Pai e que os discípulos ficarão no mundo, continuando a sua missão. Nesse momento de despedida, Jesus recorda aos discípulos o essencial da sua mensagem e se dirige a eles como amigos, escolhidos para serem colaboradores no trabalho apostólico.

Podemos extrair deste texto evangélico muitos ensinamentos, mas concentremos a nossa atenção nestas significativas palavras de Jesus: “Já não vos chamo servos... Eu vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai” (cf. Jo 15,15). Ele nos oferece a sua amizade, lembrando que não existem segredos entre amigos: Cristo nos diz tudo quando ouve o Pai; nos oferece a sua plena confiança e, com a confiança, também o conhecimento. Ele nos revela o seu rosto, o seu coração, nos mostra a sua ternura, o seu amor apaixonado que vai até à loucura da cruz.

No início do texto Jesus diz: “Já não vos chamo servos...” (v.15). Como de fato, o conceito que predominava no Antigo Testamento para indicar o relacionamento do homem com Deus era o conceito de servidão. Deus é o Senhor, nós os seus servos. Ao ser chamado por Deus, responde, por exemplo, o jovem Samuel: “Fala Senhor, que teu servo escuta” (cf. 1Sm 3,1-10). No canto do “Benedictus”, Davi é apresentado como o “servo do Senhor”. E é exatamente isto que Maria diz no momento da anunciação do anjo: “Eis aqui a serva do Senhor” (Lc 1,38). E, no canto do “Magnificat”, Maria volta a dizer: “Porque olhou para a humildade de sua serva” (Lc 1,48). Agora Jesus nos diz a consoladora palavra: "Já não vos chamo servos... Eu vos chamo amigos" (Jo 15,15).

E sobre a amizade, a Sagrada Escritura nos apresenta ricos testemunhos.  O Primeiro livro de Samuel nos narra o relacionamento de David e Jônatas como uma das mais belas experiências de amizade (cf. 1Sm 18).  O Livro do Eclesiástico frisa: “Aqueles que amam e respeitam o Senhor encontrarão o amigo fiel; Amigo fiel é proteção poderosa, e quem o encontrar, terá encontrado um tesouro. Amigo fiel não tem preço, e o seu valor é incalculável. Amigo fiel é remédio que cura, e os que temem ao Senhor o encontrarão" (Eclo 5,16; 6,14-16). O Livro dos Provérbios observa: "Em todo o tempo ama o amigo, e na angústia se faz o irmão" (Prov 17,17).

Os amigos verdadeiros são tesouros de inestimável valor, porque tornam o homem capaz de encarar e aceitar sua real condição: a fragilidade humana. A fragilidade desempenha importante papel na vida humana. É por causa dela que os homens precisam de amigos. Não somos fracos nos mesmos pontos, assim, cada um supre e completa o outro, compensando mutuamente as carências,  deficiências e fragilidades. A amizade pode ter como origem um instinto de sobrevivência da espécie, com a necessidade de proteger e ser protegido. A amizade é uma experiência sublime; sua existência na vida de um ser humano é a principal prova de que ele não está sozinho. Amigo é companheiro, uma presença que nos impulsiona e torna qualquer dificuldade mais fácil de ser vencida. Uma amizade só se constrói com base em muita confiança, respeito e fidelidade.  É uma das mais expressivas formas de amor. É uma virtude extremamente necessária à vida. Mesmo que possuamos diversos bens, riqueza, saúde, poder, ainda assim, não serão suficientes para nossa realização plena, pois nos falta a essencial e indispensável amizade. Certamente ninguém escolheria viver sem amigos (cf. T. MERTON, Homem algum é uma Ilha, Campinas, 2003, p. 150).

Uma amizade consolidada no tempo pode nos transformar, porque, antes de tudo, o amigo nos ama como somos.  É com ele que partilhamos as alegrias e as tristezas e nele encontramos o apoio que faz diminuir as nossas mágoas. O que muitas vezes os pais não conseguem, um amigo consegue fazer, sobretudo, nos corrigir. Ele atinge o coração. O amigo é capaz de dizer as coisas como elas são. Ele nos dizer as verdades que não gostaríamos de ouvir. Muitas vezes podem ocorrer rupturas, pode surgir o afastamento, mas os dias passam e a tendência é voltar atrás.  Ambos se entendem. Não conseguem ficar longe um do outro. A amizade é mais forte que o desentendimento. Muitas vezes só a amizade é capaz de nos dobrar. Ter amigos é essencial. Ser amigo é o segredo da vida e da vitória. Porque na amizade há amor, amor puro, amor fraternal.

Para Santo Agostinho a amizade é um dom de Deus.  E ainda sustenta: “Nem sempre o que é indulgente conosco é nosso amigo, nem o que nos castiga, nosso inimigo. São melhores as feridas causadas por um amigo que os falsos beijos de um inimigo. É melhor amar com severidade a enganar com suavidade” (S. AGOSTINHO, As confissões, Livro II, cap. 9, p. 55).  Para São Tomás de Aquino “a amizade diminui a dor e a tristeza” (S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologica, I-II, q. 36, a. 3). Para Aristóteles o “amigo é um outro eu... Sem amizade o homem não pode ser feliz... O verdadeiro amigo deve ser capaz de chegar até as últimas consequências, a ponto de doar não só os próprios bens, mas também a própria vida pelo amigo” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, Martin Claret, p. 173). O dar a vida pelos amigos tem, em Jesus, um valor infinitamente superior ao que pensaram os filósofos de todos os tempos.  

Jesus entende o seu amor como um amor entre amigos.  Não é um amor que vem de cima, é um amor que vê no outro um igual, quando a dedicação ao outro vem antes do próprio interesse.  E o auge desse amor está na morte de Jesus pelos amigos que somos nós: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos” (Jo 15,15).  Jesus deu a vida pelos seus amigos. Amigos que não o tinham compreendido, que no momento crucial o abandonaram e o traíram e renegaram. O amor do amigo é, tanto para os judeus quanto para os gregos, o maior bem e o cumprimento de seu desejo mais profundo.

Jesus chama os seus discípulos de amigos. Eles já não são servos que não sabem o que o senhor faz e que não têm acesso ao coração de seu amo. O servo está distante do seu senhor, ele está sempre no escuro e temeroso, enquanto os discípulos de Jesus são por ele amados incondi-cionalmente. Nessa imagem da amizade, o Evangelista São João descreve o mistério da nova relação de Deus com os homens, que se tornou realidade por Jesus.  Somos amigos de Deus. E. quando somos amigos, o amor flui espontaneamente. Na imagem do amigo, Jesus nos mostra a nossa dignidade. Passamos a ser íntimos dele. Ele se abriu conosco, nos revelou o mistério do Pai. Com isto percebemos como somos importantes para Jesus, a ponto dele entregar a sua vida por nós (cf. A. GRÜN, Jesus, porta para a vida, São Paulo, p. 128). Sob este aspecto podemos compreender as palavras de São Paulo: “Quem nos separará do amor de Cristo?” (Rm 8,35), pois “Ele me amou e se entregou por mim!” (Gl 2,20). O cristianismo eleva o conceito de amizade, onde passa a ter o caráter de dom, vocação, comunhão como fruto da amizade que Cristo viveu com o Pai, tornando-se agora o referencial para o amor humano.

Há algo comovedor nesta declaração de Jesus: “Eu vos chamo amigos”. É uma afirmação que nos emociona. Quanta dignidade para nós termos um amigo, mas uma dignidade maior está em sermos amigos de Jesus. Mas não podemos esquecer que para Jesus, a amizade está também na comunhão das vontades: "Vós sois meus amigos, se fizerdes o que eu vos mando" (Jo 15,14).  Nesta comunhão realiza-se a nossa redenção: sermos amigos de Jesus, é também sermos amigos de Deus. Com isto, somos chamados a uma relação pessoal, cheia de confiança e de amizade com a pessoa de Jesus. Não podemos esquecer que a verdadeira amizade com Cristo se expressa na forma de viver, por isto, precisamos nos empenhar sempre em abrir o nosso coração à amizade com Cristo. Permitamos que ele seja nosso amigo, que ele participe da nossa vida e que possamos fazer sempre a sua vontade.  Assim seja.

 

  1. Anselmo Chagas de Paiva, OSB

Mosteiro de São Bento/RJ