Os casais em segunda união e o acesso ao sacramento da eucaristia, de acordo com a
Amoris Laetitia

A exortação apostólica Amoris Laetitia não contém, formalmente, regra canônica geral, proibindo os casais em segunda união de receberem o sacramento da eucaristia. O texto da exortação é claríssimo a esse respeito. Vamos à exortação: “Se se tiver em conta a variedade inumerável de situações concretas (...) é compreensível que se não devia esperar do sínodo ou desta exortação nova normativa geral de tipo canônico, aplicável a todos os casos. É possível apenas novo encorajamento a responsável discernimento pastoral e pessoal dos casos particulares que deveria reconhecer: uma vez que o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos, as consequências ou efeitos de uma norma não devem ser sempre os mesmos” (n. 300).

Na verdade, a Amoris Laetitia autoriza, em determinadas situações, após o devido discernimento pastoral, o recebimento da penitência e da comunhão eucarística por casais que vivem em segundas núpcias. Isto está claro no documento em apreço: “Em certos casos poderia haver, também, a ajuda dos sacramentos” (n. 305, nota de rodapé).

Por outro lado, a exortação apostólica Familiaris Consortio, que até 8/4/2016 (data da publicação da Amoris Laetitia), constituía o regramento básico para o cuidado pastoral dos casos de segunda união, dispunha de norma canônica geral proibitiva bastante clara: “A Igreja, contudo, reafirma sua práxis, fundada na sagrada escritura, de não admitir à comunhão eucarística os divorciados que contraíram nova união” (n. 84d). Nada obstante, mesmo sob a égide da Familiaris Consortio, ao lume dos princípios genéricos de moral, havia situações (exceções) em que o penitente, diante do confessor e, por conseguinte, diante de Deus – no âmbito do sacramento da penitência, o padre-confessor faz as vezes de Deus – era autorizado, após sério discernimento, a comungar, a despeito da regra canônica geral proibitiva que vigia então, e que não vige mais, ao menos formalmente. De fato, afirmava são João Paulo II na Familiaris Consortio: “Saibam os pastores que, por amor à verdade, estão obrigados a discernir
bem as situações.” (n. 84b).

Reportando-se a princípio da teologia moral, o santo padre afirma na Amoris Laetitia: “A Igreja possui sólida reflexão sobre os condicionamentos e as circunstâncias atenuantes. Por isso, já não é possível dizer que todos os que estão em situação chamada irregular vivem em estado de pecado mortal, privados da graça santificante” (n. 301). A Amoris Laetitia traça, também, distinção, já conhecida da teologia moral, entre pecado objetivo e pecado subjetivo. Ouçamos Francisco: “Por causa dos condicionalismos edos fatores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio de situação objetiva de pecado – mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver na graça de Deus (...)” (n. 305). Devemos reter na memória estas significativas palavras do santo padre, reproduzidas na

Amoris Laetitia: “É mesquinho deter-se a considerar se o agir de uma pessoa corresponde ou não à norma geral, porque isto não basta para discernir e assegurar plena fidelidade a Deus na
existência concreta do ser humano.” (n. 304).

A regra geral proibitiva, presente tanto na Familiaris Consortio quanto no Catecismo da Igreja Católica (n.o 1650) corresponde a determinada “política pastoral”, digamos assim, ora alterada pelo papa Francisco mediante a Amoris Laetitia, vez que a tradição bíblica jamais referenda a impossibilidade de exceção à norma geral proibitiva. Daí o destaque atribuído pelo pontífice romano aos casos concretos que pululam na atualidade e demandam assistência pastoral específica. Em consequência, Francisco não ab-roga a aludida norma geral proibitiva, mas, ao não reiterá-la expressamente na Amoris Laetitia, opta por privilegiar a solução caso a caso, na perspectiva do discernimento.

A palavra-chave do capítulo VIII da Amoris Laetitia é “discernimento”! O que expus neste artigo parece coalescer com os “Critérios básicos para a aplicação do capítulo VIII da Amoris Laetitia”, documento dos bispos da Região de Buenos Aires (2016). A este documento dos colegas de Buenos Aires, o papa Francisco deu resposta contundente: “O texto é muito bom e explicita cabalmente o sentido do capítulo VIII da Amoris Laetitia. Não há outras interpretações. Estou certo de que fará muito bem” (negritos nossos).

Reflitamos, por fim, na seguinte admoestação do vigário de Cristo, igualmente inserida na Amoris Laetitia: “Um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações ‘irregulares’, como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas. É o caso dos corações fechados, que muitas vezes se escondem até por detrás do ensinamento da Igreja, para se sentar na cátedra de Moisés e julgar, às vezes com superioridade e superficialidade, os casos difíceis e as famílias feridas.” (n. 305).


Edson L. SampelProfessor da Faculdade de Direito Canônico São Paulo Apóstolo
(da Arquidiocese de São Paulo).