A nova legislação sobre nulidade de matrimônio, emanada pelo papa Francisco em dezembro de 2015, prevê o estabelecimento de uma estrutura investigativa dos casamentos conflituosos, a cargo da pastoral matrimonial da diocese. A referida investigação ocorrerá antes da propositura do processo judicial. É o que dispõe o artigo 2.º das regras procedimentais da carta apostólica Mitis Iudex Dominus Iesus. Aqui abro um parêntese para esclarecer um equívoco de tradução que pode gerar problemas: não se trata de regras processuais, como traduziu erradamente certa edição; as regras processuais correspondem às alterações dos cânones, a partir do cânon 1671. As regras procedimentais, por seu turno, objetivam pôr em prática algumas novas disposições da carta apostólica. Vejamos o teor do mencionado artigo 2.º da regras procedimentais:

“Artigo 2.º. A investigação anterior ao processo ou pastoral, que acolhe nas estruturas paroquiais ou diocesanas os fiéis separados ou divorciados que duvidam da validade do próprio matrimônio ou estão convictos da nulidade, está orientada a conhecer as condições desses fiéis e a obter elementos para a eventual propositura do processo judicial, ordinário ou mais breve. Tal investigação se desenvolverá no âmbito da pastoral matrimonial diocesana unitária” (Tradução de Edson Sampel e José de Ávila Cruz, grifos meus).
Quer-se, na verdade, evitar a mera judicialização das situações matrimoniais conflitivas, quando tudo só se resolve pelo poder judiciário. A aludida pastoral, prévia ao processo, tem por objetivo humanizar os relacionamentos dos que estão prestes a se divorciar ou já estão divorciados, predispondo-os psicológica, moral e espiritualmente para o encaminhamento do feito ao tribunal eclesiástico competente, se não houver conciliação entre os cônjuges (com eventual sanação administrativa in radice etc., dependendo de cada caso).

Assim, a pastoral anterior ao processo judicial, ou seja, extrajudicial, visa a preparar os cônjuges, concitando-os ao compromisso com a verdade objetiva e real acerca do seu matrimônio, a fim de que não prevaleça nenhuma percepção subjetiva dos fatos. Afinal de contas, o santo padre, o papa Francisco, insiste em que no novo sistema se salvaguarde o casamento válido e consumado.

A pastoral matrimonial, de âmbito diocesano, encarregada dessa investigação fora do processo, contará com a participação de leigos e clérigos com formação psicológica, filosófica, teológica etc., vale dizer, dar-se-á uma investigação holística do casamento com problemas, conduzida na paróquia, quase no recesso do lar, não circunscrita ao racionalismo das cortes canônicas. É o que se depreende da leitura do artigo 3.º das regras procedimentais.

A ereção de câmaras eclesiásticas não cumpre o disposto no artigo 2.º das regras procedimentais da Mitis Iudex Dominus Iesus. As referidas câmaras constituem uma extensão da corte canônica; são suas “filiais”, para empregar um termo não adequado. Não se questiona a utilidade dessas câmaras; algo parecido - numa comparação bem tosca- com as varas em relação aos tribunais, na justiça estatal. As câmaras eclesiásticas decerto têm o condão de levar o tribunal para mais perto do fiel. Isto é louvável e outrossim desejado pela carta apostólica em apreço. Entretanto, elas ainda são o tribunal, o poder judiciário da Igreja e não perfazem o escopo dos artigos 2.º ao 5.º das regras procedimentais.

Aguarda-se, desta feita, que as dioceses do Brasil se empenhem em criar essa pastoral pré-processual, atrelada à pastoral matrimonial. Com certeza, haverá inúmeros episódios de reconciliação entre os cônjuges, assistidos espiritualmente e também coadjuvados por uma plêiade de fiéis voluntários, oriundos de várias formações profissionais.

Edson Luiz Sampel
Professor da Faculdade de Direito Canônico São Paulo Apóstolo
Membro da Sociedade Brasileira de Canonistas (SBC) (Sócio n.º 108/91)