A NUNCIATURA APOSTÓLICA - sua natureza e suas funções -

Alfio Rapisarda

(Exposição do Núncio Apostólico no Brasil, Dom Alfio Rapisarda, por ocasião do Encontro com os novos Bispos do Brasil nomeados entre outubro de 1998 e setembro de 1999.)

Foi-me pedido que fizesse uma apresentação da Nunciatura Apostólica, da sua natureza e das suas funções, e que dissesse algo sobre as relações dos Bispos com a mesma. E' o que me proponho fazer com esta minha modesta exposição.

A Nunciatura Apostólica, representação da Santa Sé.
Recentemente li numa publicação nossa o seguinte. O Núncio Apostólico é o representante diplomático do Estado do Vaticano junto ao governo brasileiro. Além de representar a Igreja diplomaticamente, o Núncio exerce a função de ligar a Igreja Católica do Brasil junto à Santa Sé. Tais afirmações resultam ou não verdadeiras ou exageradas ou deturpadas, enfim, não corretas.
Não é verdade que o Núncio Apostólico é o representante diplomático do Estado do Vaticano junto ao governo brasileiro, pois ele é o Representante da Santa Sé, que não é um Estado nem é, tampouco, o Vaticano e não se identifica com ele, a não ser de uma maneira muito imprópria.
O Vaticano, ou para ser mais preciso, o Estado da Cidade do Vaticano, é um instrumento para a independência da Santa Sé que, por sua vez, tem uma natureza e uma identidade própria e sui generis, enquanto é a personificação do governo central da Igreja. Como dizia o Papa Paulo VI, a Santa Sé é um organismo completamente especial, pela sua origem, pela sua natureza e pelos seus fins.( Insegnamenti di Paolo VI, M. 1965, p. 675.)
Todos os Estados sabem que o sujeito internacional de direito da legação e da atividade diplomática não é o Vaticano, mas sim a Santa Sé, que é o Papa e a Cúria Romana, isto é, o Governo central e soberano da Igreja Católica. E a este respeito poderia citar a Convenção de Viena, sobre relações diplomáticas, que no artigo 16, § 3, fala do representante da Santa Sé e não do Vaticano.
Como Representante da Santa Sé, o Núncio desenvolve uma missão diplomática junto ao governo. Pois o Núncio é efetivamente um diplomata e como tal ele é enviado e recebido pelo governo do País para o qual foi nomeado.
Objeto da atividade diplomática junto ao governo é a Igreja local: a sua vida e a sua missão. São também, ao mesmo tempo, os grandes valores éticos: a paz, a justiça, a liberdade (em particular, a liberdade de religião e de consciência), os direitos humanos, etc.
Pode-se dizer que o objeto que interessa ao trabalho diplomático da Santa Sé é uma realidade que se encontra e está situada no interior do País para o qual o Papa envia o seu representante: trata-se da Igreja local, que está naquele País. Uma realidade que parece já enfatizada pelo próprio nome com que tradicionalmente é chamado o Representante Pontifício: não de Embaixador, mas sim de Núncio Apostólico. Tratamento reconhecido e ratificado até pelo direito diplomático internacional. A já citada Convenção de Viena, estabelecendo que há três classes de chefes de missão, precisa que a primeira classe se compõe de embaixadores ou de Núncios
Acenando tão somente à história da diplomacia pontifícia da Santa Sé, permito-me dizer apenas que a diplomacia pontifícia remonta aos primeiros séculos da Igreja e que se desenvolve independentemente do poder temporal dos Papas; ao contrário, inicia-se muito tempo antes do exercício do poder temporal, desde o século IV.
Mesmo sendo Representante da Santa Sé junto ao governo, o Núncio Apostólico é também, e simultaneamente, representante da Santa Sé junto à Igreja local.
Em ambas as representações, o Núncio desenvolve uma atividade que tem um só objetivo: a Igreja, a sua vida e a sua missão. Com o governo, ele desenvolve a sua atividade em veste diplomática, com a Igreja, ao contrário, desenvolve a mesma atividade como eclesiástico, sem recorrer à modalidade e às formalidades próprias da diplomacia que regem os relacionamentos com os Estados.
Para a Igreja local, então, a Nunciatura Apostólica é a representação do Santo Padre e da Santa Sé. Representação não diplomática, e por isso dita habitualmente: Representação Pontifícia (ou seja, do Pontífice de Roma), justamente porque nos seus relacionamentos com os Bispos e as instituições eclesiásticas do País, e por conseqüência no desenvolvimento das suas atividades, não se inspira, menos ainda recorre, aos mesmos instrumentos que, ao contrário, emprega nos relacionamentos com o governo.

Figura e funções do Núncio Apostólico
A figura e as funções do Núncio Apostólico estão definidas no Código de Direito Canônico, promulgado em 25 de janeiro de 1983, que dedica o capítulo V, sobre a constituição hierárquica da Igreja, aos «Legados do Romano Pontífice.»

Formuladas em 6 cânones, do número 362 ao 367, as normas sobre os «Legados do Romano Pontífice», os Núncios Apostólicos, em vigor hoje, são como que o compêndio do Motu Proprio Sollicitudo Omnium Ecclesiarum de 24 de junho de 1969, com o qual o Papa Paulo VI reestruturou a fisionomia e as funções das Nunciaturas, atualizando assim uma estrutura eclesiástica aos novos tempos.

O documento de Paulo VI, por sua vez, foi a resposta ao voto conciliar registrado no Decreto Christus Dominus, n. 9, onde se lê que os pastores do Sacrossanto Concílio...  desejam que, tendo em conta o cargo pastoral próprio dos bispos, se determinem mais claramente as atribuições dos Núncios do Pontífice Romano.

No número 10 o mesmo Decreto conciliar deseja que os Núncios do Romano Pontífice, provenham mais, quanto for possível, das diversas regiões da Igreja, de maneira que os serviços ou órgãos centrais da Igreja Católica apresentem caráter verdadeiramente universal.

O Código de Direito Canônico de 1917
Até o II Concílio Ecumênico do Vaticano, com base no Código de 1917, então em vigor, a natureza e as funções do Representante da Santa Sé tinham realmente uma dimensão predominantemente diplomática, a despeito daquela eclesial  e, sobretudo, pastoral.

O título V da Segunda Seção da Primeira Parte do Livro II da Codificação de 1917, dedicado aos Legados do Romano Pontífice estabelecia o que segue:

Cân. 267. § 1. Os Legados que se enviam com o título de Núncios e Internúncios: 1. Fomentam, segundo as normas recebidas da Santa Sé, as relações entre a Sé apostólica e os governos civis, perante os quais desempenham sua legação de maneira estável. 2. No território que lhes foi designado, devem velar pelo estado das Igrejas e manter o Romano Pontífice informado.
Cân. 269, § 1. Os Legados devem deixar livres os Ordinários locais no exercício de sua jurisdição.

Tal perspectiva, marcadamente diplomática, é completamente modificada no Motu Proprio Sollicitudo Omnium Ecclesiarum, de 24 de junho de 1969.

Nesse documento o Papa Paulo VI procede a uma reconsideração de toda a matéria das Representações Pontifícias, avançando bem mais do que foi solicitado pelo Concílio.

Sollicitudo Omnium Ecclesiarum, de 1969

O Motu Proprio abre-se com uma introdução doutrinal que condensa em volta de três princípios um verdadeiro tratado de teologia eclesial e de direito público eclesiástico.

O primeiro princípio diz respeito ao carisma de Pedro, ou seja ao oficio do Papa, como centro e garantia da unidade da Igreja, com a sua dimensão missionária e ecumênica:

O Bispo de Roma, em virtude do seu cargo, tem poder pleno, supremo e universal sobre a Igreja... (LG, n. 22). Ele, além disso, como sucessor de Pedro, é o princípio e o fundamento perpétuo e visível da unidade, quer dos bispos, quer da multidão dos fiéis (LG, n. 23), e portanto tem como função precípua na Igreja a de manter unido e indiviso o colégio episcopal (LG, n, 18). Ao confiar ao seu Vigário o poder das chaves e ao constituí-lo pedra e fundamento da sua Igreja, o Pastor eterno lhe atribuiu também o mandato de confirmar os próprios irmãos (Lc 22,32): o que acontece não só quando os guia e os mantém unidos em seu nome, mas também quando sustenta e conforta, certamente com a sua palavra, mas de algum modo com a sua presença.

O segundo princípio é aquele da comunhão viva no interior da Igreja, o que torna ainda mais ciente do exercício da colegialidade num movimento ininterrupto de intercâmbio rumo ao centro e ao coração da Igreja - como diz o texto - e que do centro se difunde rumo á periferia e leva a todas e a cada uma das Igrejas locais, a todos, aos pastores e fiéis, a presença e o testemunho daquele tesouro de verdade e de graça do qual Cristo fez o seu Vigário participe, depositário e dispensador.

Na primeira direção - o movimento rumo ao interior da Igreja, ao centro e ao coração da Igreja, operam:

  • - oSínodo dos Bispos com a sua secretaria permanente em Roma;
  • - osBispos, os sacerdotes e os leigos provenientes de todas as partes do mundo que exercem suas atividades na Cúria Romana;
  • - osPastores das dioceses com as suas correspondências e as visitas ad limina;
  • - asconferências episcopais com os seus relatórios e a comunicação das suas atividades.

No movimento rumo a periferia registram-se:

  • - asviagens pessoais do Santo Padre;
  • - aatividade dos Dicastérios da Santa Sé;
  • - amissão dos Representantes Pontifícios, modelada pela própria missão do Papa.

Mediante os Nossos Representantes Pontifícios, que residem em várias nações - escreve o Papa Paulo VI - nós nos tornamos participes da vida dos Nossos Irmãos e como que inserindo-nos nela chegamos a conhecer, de modo mais ágil e seguro, as suas necessidades e íntimas aspirações.

O terceiro princípio diz respeito ao aspecto diplomático do representante pontifício, em vista de um melhor serviço nas relações com as comunidades civis.

E isto não somente em virtude do direito de legação ativa e passiva que pertence constitucional e historicamente ao Chefe da Igreja e da responsabilidade que lhe compete, mas também em harmonia com a constituição pastoral do II Concílio Ecumênico do Vaticano Gaudium et Spes e com o princípio anunciado na mensagem final do Concílio aos governantes: na vossa cidade terrestre e temporal, o Cristo constrói a sua cidade espiritual e eterna, a sua Igreja.( AAS, LVIII, 1966, p. 10)

Já o tinha expresso com clareza Pio XII na radiomensagem natalina de 1951: A Igreja não é uma sociedade política, mas religiosa; isto porém não a impede de manter com os estados relações não só externas, mas também internas e vitais. A Igreja, todavia, foi fundada por Cristo como sociedade visível e, como tal, se encontra com os Estados em seu próprio território, abraça na sua solicitude os próprios homens e de múltiplas formas e sob vários aspectos usa os mesmos bens e as mesmas instituições.( Pio XII, Discorsi e Messaggi. Vol. XIII, pág. 426.)

Trata-se, sem dúvida, de diplomacia, mas singular e a serviço do bem comum.

Paulo VI assim se exprimia, falando ao Corpo Diplomático acreditado junto à Santa Sé, em 9 de janeiro de 1971, a propósito das relações com os Estados: Quais são os temas deste diálogo além dos problemas relativos á situação da Igreja nos vários Países e os fins da própria missão e do seu serviço com os diversos povos, se não as questões mais importantes e os grandes interesses da humanidade? Por exemplo: os direitos de liberdade religiosa, que são aqueles de Deus e da consciência; os direitos humanos; a consciência da ordem e do progresso internacional; a justiça e especialmente a paz. É necessário dizer: - continuava Paulo VI - as razões profundas das intervenções da Santa Sé passam desapercebidas ao olhar dos observadores superficiais porque nascem das motivações espirituais e morais e assim não se confundem com alguma ação de ordem temporal.( L'Osservatore Romano, 10-11 de janeiro de 1971.)

O eixo da nova legislação sobre a figura e as funções do Representante Pontifício, sancionada pelo Código de 1983, que se contrapõe ao Cânone 267 do Código de 1917, é constituído pelo artigo IV do Documento Sollicitudo Omnium Ecclesiarum, de Paulo VI.

Neste artigo se lê:

•I. Objetivo primeiro e especifico da missão do Representante Pontifício é tornar sempre mais estreitos e operantes os vínculos que ligam a Sé Apostólica e as Igrejas locais.

•II. Ele, além disso, interpreta a solicitude do Romano Pontífice para o bem do País no qual exercita a sua missão...

•III. Ao Representante Pontifício cabe também o dever de tutelar, em concorde ação com os bispos, junto às autoridades civis... a missão da Igreja e da Santa Sé...

•IV. Na sua qualidade de enviado do Supremo Pastor das almas, ... promoverá, em harmonia com as instruções que recebe dos competentes Ofícios da Santa Sé e de acordo com os Bispos do lugar, oportunos contatos entre a Igreja católica e as outras comunidades cristãs...

Somente por este artigo é fácil notar, comentava Padre Fiorello Cavalli, SI, na publicação La Civiltá Cattolica, (quad. 2857, 1969, p. 36). que a impostação jurídica dada pelo Código de Direito Canônico para as funções do Representante Pontifício não desapareceu totalmente no Motu Proprio, mas está em larga medida superada por uma visão predominantemente pastoral. O Representante Pontifício não é um observador passivo e mesmo somente um embaixador empenhado a executar um plano imposto do exterior. É, ao contrário, o protagonista ativo, o artífice operoso de uma representação que diremos total, enquanto a sua missão deve adequar-se e até mesmo identificar-se com aquela do Papa, como está descrito na parte introdutória. Essa assume os grandes temas conciliares, movendo da renovada visão da eclesiologia, no justo ordenar-se do oficio dos pastores das igrejas particulares com aquele do pastor da Igreja universal.

O artigo V do Motu Proprio de Paulo VI diz que o Representante Pontifício tem como sua função:

•1. manter regularmente informada a Santa Sé sobre as condições das comunidades eclesiais para as quais é enviado, e sobre quanto pode ter reflexo na vida da Igreja e para o bem das almas.

•2. Ele, por um lado, faz conhecer à Santa Sé o pensamento dos Bispos, do Clero, dos Religiosos e dos fiéis do território onde desenvolve o seu mandato, e também envia a Roma as suas propostas e petições; por outro lado, torna-se intérprete com quem de dever dos atos, documentos, informações e instruções que emanam da Santa Sé.

•3. Por isso, cada Ofício e Dicastério da Cúria Romana não deixará de comunicar-­lhe as decisões tomadas e, ordinariamente, se valerá dos seus bons ofícios para fazer chegar ao destinatário; além disso, pedirá também o seu parecer sobre os atos e os procedimentos a serem adotados no território no qual desenvolve a sua missão.

Aqui a expressão devem velar sobre o estado das Igrejas e informar o Romano Pontífice, como se lia no Cânone 267, § 2 do Código de 1917, que podia interpretar-se como vigilância, controle ou até mesmo espionagem, foi substituída pela expressão manter regularmente informada a Santa Sé que faz do Representante Pontifício o autorizado, e por isso o responsável, porta-voz da Santa Sé e para a Santa Sé.

O artigo VI trata da delicadíssima questão da escolha dos candidatos ao episcopado e das nomeações dos Bispos.

O Motu Proprio de Paulo VI estabelecia a esse respeito:

1. Com relação às nomeações dos Bispos e outros Ordinários a eles equiparados, o Representante Pontifício tem o dever de instruir o processo canônico informativo sobre os candidatos, e de encaminhar os nomes aos competentes Dicastérios Romanos, juntamente com um relatório preciso, no qual exprimirá coram Domino o próprio parecer e voto preferencial.

2. No exercício desta função ele:

a) valer-se-á livre e reservadamente da opinião de eclesiásticos e também de leigos prudentes que pareçam idôneos para fornecer sinceras e úteis informações...

b) procederá de acordo com as normas estabelecidas pela Santa Sé na matéria de proponendis ad Episcopale ministerium in Ecclesia, tendo presente, em particular, a competência das conferências episcopais.

O artigo VII refere-se à geopolítica eclesiástica, isto é, à criação e supressão de novas circunscrições eclesiásticas.

A respeito lê-se que permanecendo a faculdade das Conferências Episcopais de formular votos e propostas sobre a ereção, o desmembramento e a supressão de circunscrições eclesiásticas diocesanas e provinciais... é tarefa do Representante Pontifício promover - também por própria iniciativa, quando disso sinta necessidade - o estudo de tais questões, e de encaminhar as propostas da Conferência Episcopal, munidas do próprio parecer, ao competente Dicastério da Santa Sé.

Típica expressão da solicitude pastoral e do empenho de solidariedade e de co­responsabilidade colegial que caracteriza todo o Motu Proprio é o artigo VIII, que diz respeito às relações com os bispos e com as conferências episcopais. A antiga e enxuta disposição contida no cânone 269 do Código de 1917: Legati ordinariis locorum liberum suae jurisdictionis exercitium reIinquant é substituida pela norma positiva da colaboração.

Leiamos, então:

•1. Em relação aos Bispos, aos quais é confiado por divino mandato o cuidado das almas em cada diocese, o Representante Pontifício tem o dever de ajudar, aconselhar e prestar seu trabalho pronto e generoso, com espírito de fraterna colaboração, respeitando sempre o exercício de jurisdição própria dos Pastores.

•2. No que diz respeito às conferências episcopais, o Representante Pontifício tenha sempre presente a extrema importância de sua tarefa e, portanto, a necessidade de manter, com elas, estreitas relações e de oferecer toda ajuda possível. Ainda que não seja membro da Conferência, ele estará presente na reunião inicial de cada assembléia geral, salva ulterior participação em outros atos da Conferência, de acordo com o convite dos próprios bispos ou por explícito mandato da Santa Sé. Ele será, além disso, informado, em tempo hábil, da pauta da assembléia e receberá cópia das atas, para seu conhecimento e para transmiti-las à Santa Sé.

Colaboração leal, portanto, e integração orgânica de responsabilidade e de carismas diversos.

O artigo IX faz referência às comunidades religiosas e aos institutos seculares de direito pontifício aos quais, assim como às Conferências, o Representante Pontifício deve conselho, assistência e coordenação.

As disposições relativas aos relacionamentos entre Igreja e Estado estão contidas no Artigo X que estabelece:

1. As relações entre Igreja e Estado são, normalmente, cultivadas pelo Representante Pontifício, ao qual é confiado o encargo, próprio e peculiar, de agir em nome da Santa Sé:

a) para promover e favorecer os relacionamentos com o governo da nação na qual é acreditado.

b) para tratar questões concernentes às relações entre Igreja e Estado.

c) para ocupar-se em particular da estipulação do modus vivendi, de acordos e de concordatas, bem como de convenções que se referem a questões da esfera do direito público.

2. Ao desenvolver tais tratativas, convém que o Legado Pontifício, no modo e na medida em que as circunstâncias permitirem, peça o parecer e o conselho do episcopado e o mantenha informado do andamento das negociações.

Inteiramente novo no ordenamento legislativo da Igreja é o artigo XI, relativo às organizações internacionais governamentais e não governamentais e àquelas católicas, que correspondem às diretrizes da Constituição Pastoral Gaudium et spes e ao decreto Apostolicam actuositatem e que podemos saudar como um sinal dos tempos.

Código de Direito Canônico de 1983

A reestruturação da figura e das funções do Representante Pontifício, conduzida pelo Papa Paulo VI com o Motu Proprio "Sollicitudo Omnium Ecclesiarum, está atualmente ratificada no Código de Direito Canônico, promulgado em 25 de janeiro de 1983, como segue:

O Cânone 362 estabelece o direito originário e independente do Romano Pontífice de nomear e enviar seus Legados, seja às Igrejas particulares nas várias nações ou regiões, seja, ao mesmo tempo, aos Estados e às Autoridades públicas...

O Cânone 363 sanciona que:

§ 1. Aos Legados do Romano Pontífice é confiado o encargo de representar estavelmente o Romano Pontífice, junto às Igrejas particulares ou também junto aos Estados e Autoridades públicas, aos quais são enviados.

§ 2. Representam também a Sé Apostólica os que são encarregados de uma Missão pontifícia, como Delegados ou Observadores, junto aos Conselhos internacionais ou junto a Conferências e Congressos.

O Cânone 364 é uma reprodução, quase literal, dos artigos IV - VIII do Motu Proprio de Paulo VI: Sollicitudo Omnium Ecclesiarum. Nele se lê:

O principal múnus do Legado Pontifício é tornar sempre mais firmes e eficazes os vínculos de unidade que existem entre a Sé Apostólica e as Igrejas particulares. Compete, por isso, ao Legado Pontifício, no âmbito de sua jurisdição:

1º. informar a Sé Apostólica sobre as condições em que que encontram as Igrejas particulares, e sobre o que diz respeito á própria vida da Igreja e ao bem das almas;

2º. assistir, com sua atuação e conselho, aos Bispos, sem prejuízo do exercício do legítimo poder destes;

3º. estimular freqüentes relações com a Conferência dos Bispos, dando a ela toda a ajuda possível;

4º. quanto à nomeação de Bispos, comunicar ou propor à Sé Apostólica os nomes de candidatos, bem como instruir o processo informativo sobre estes, de acordo com as normas dadas pela Sé Apostólica;

5º. esforçar-se para que se promova o que diz respeito à paz, ao progresso e à cooperação entre os povos;

6º. cooperar, junto com os Bispos, para estimular oportuno relacionamento da Igreja católica com as demais Igrejas ou comunidades eclesiais e com as religiões não-cristãs;

7º.  em ação conjunta com os Bispos, defender, diante das Autoridades do Estado, o que diz respeito à missão da Igreja e da Sé Apostólica;

8º. além disso, exercer as faculdades e cumprir os outros mandatos que lhe forem confiados pela Sé Apostólica.

O cânone 365 reporta ao artigo X do Sollicitudo Omnium Ecclesiarum, estabelecendo que:

§ 1. É, também, encargo especial do Legado Pontifício, que ao mesmo tempo exerce legação junto aos Estados, de acordo com as normas do direito internacional:

1º. promover e estimular as relações entre a Sé Apostólica e as Autoridades do Estado;

2º. tratar de questões concernentes às relações entre a Igreja e o Estado e, de modo especial, preparar e pôr em prática concordatas e outras convenções similares.

§ 2. No trato das questões mencionadas no § 1, conforme o aconselharem as circunstâncias, o Legado Pontifício não deixe de pedir a opinião e conselho dos Bispos de sua jurisdição eclesiástica e de informá-los sobre o andamento dos negócios.

Os últimos dois cânones, 366 e 367, tratam da isenção da sede do Representante Pontifício do poder de governo do Ordinário do lugar, exceto para as celebrações de matrimônios, e a continuidade do mandato, quando ocorre vacância da Sé Apostólica.

No contexto do quanto foi até aqui exposto, seja-me permitido fazer as seguintes constatações e considerações.

Constatações:

As funções do Representante Pontifício consistem em representar estavelmente o Romano Pontífice:

- junto às Igrejas particulares e

- junto aos Estados e às Autoridades públicas (Cân. 363, § 1) (MP, Art. 1).

Junto às Igreias particulares o Representante Pontifício:

- tem o dever principal de tornar mais sólidos e eficazes os vínculos de unidade que existem entre a Sé Apostólica e as Igrejas particulares (Cân. 364; MP, Art. IV, 1).

Não se trata, portanto, de ligar a Igreja Católica do País junto à Santa Sé, como dito por uma nossa publicação à qual fazia referência no inicio.

Esta tarefa de tornar mais sólidos e eficazes os vínculos, o Representante Pontifício desenvolve com a atividade de:

- informar a Sé Apostólica sobre as condições em que se encontram as Igrejas particulares, e sobre o que diz respeito à própria vida da Igreja e ao bem das almas (Cân.364, 1º). E isso com o objetivo de manter constantemente informados o Romano Pontífice e a Cúria Romana, através do conhecimento acurado e completo das condições de cada uma das dioceses, como exprime Paulo VI em seu Motu Proprio, acrescentando que o Representante Pontifício, por um lado, faz conhecer à Santa Sé o pensamento dos Bispos, do Clero, dos Religiosos e dos fiéis do território onde desenvolve o seu mandato, e também envia a Roma as propostas e petições; por outro lado torna-se intérprete, com quem de dever, dos atos, documentos, informações e instruções que emanam da Santa Sé (Art. V).

O Representante Pontifício não é certamente a única fonte de informação. Além do próprio Santo Padre, com as suas visitas, existem os Bispos através da correspondência, os relatórios qüinqüenais e respectivas visitas ad limina, a Conferência Episcopal, o Sínodo dos Bispos e aqueles eclesiásticos que colaboram nos vários organismos da Cúria Romana.

Como se observa acima (cf. supra), não se trata de vigilância e controle, mas de uma tarefa que exige do Representante Pontifício empenho, seriedade, objetividade e responsabilidade para não correr o risco de ser desmentido pelas informações das outras fontes, e então resultar não crível.

- Assistir, com sua atuação e conselho, aos Bispos, sem prejuízo do exercício do legítimo poder destes (Cân. 364, 2º).

Em relação aos Bispos - lê-se no Motu Proprio de Paulo VI - aos quais é confiado por divino mandato o cuidado das almas em cada diocese, o Representante Pontifício tem o dever de ajudar, aconselhar e prestar seu trabalho pronto e generoso, com espírito de fraterna cola-boração, respeitando sempre o exercício de jurisdição própria dos Pastores.

Para isto contribuem as visitas do Representante Pontifício às regiões e dioceses do País e os encontros com os Bispos e dos Bispos. Como também aquelas propostas ou sugestões que o Representante Pontifício permite-se formular: por exemplo, o projeto sobre os Seminários diocesanos, elaborado conjuntamente com os Bispos interessados e que está sendo examinado pela CNBB.

- Estimular freqüentes relações com a Conferência dos Bispos, dando a ela toda a ajuda possível (Cân. 364, 3º).

Relações estas que, como se pode constatar, são constantes em nível seja nacional seja regional da CNBB, por ocasião da Assembléia Geral Anual, das reuniões do Conselho Permanente e da CEP da CNBB, sem esquecer os contatos com os responsáveis pela Presidência da CNBB. Relações que, segundo meu parecer, são marcadas pela franqueza e por isso com opiniões e visões que podem ser nem sempre convergentes.

- Cooperar, junto com os Bispos, para estimular oportuno relacionamento da Igreja católica com as demais Igrejas ou comunidades eclesiais e com as religiões não-cristãs (Cân. 364, 6º).

Foi o caso, por exemplo, da participação do Núncio Apostólico numa sessão da assembléia organizada pela Comissão Nacional do Diálogo Religioso Católico-Judaico para abordar o argumento: Histórico do Acordo entre a Santa Sé e o Estado de Israel.

- Quanto à nomeação de Bispos, comunicar ou propor à Sé Apostólica os nomes de candidatos, bem como instruir o processo informativo sobre estes, de acordo com as normas dadas pela Sé Apostólica (Cân. 364, 4º).

Perante os Estados e as Autoridades Públicas, o Representante Pontifício deve

- esforçar-se para que se promova o que diz respeito à paz, ao progresso e à cooperação entre os povos. (Cân. 364, 5º);

- defender, diante das Autoridades do Estado, o que diz respeito à missão da Igreja e da Sé Apostólica (Cân. 364, 7º);

- promover e estimular as relações entre a Sé Apostólica e as Autoridades do Estado (Cân. 365,§ 1,1º);

- tratar de questões concernentes às relações entre a Igreja e o Estado e, de modo especial, preparar e pôr em prática concordatas e outras convenções similares (Cân. 365,§ 1, 1º).

Sobre o argumento das relações entre a Igreja e o Estado, Paulo VI sublinha, no seu documento, que o bem do indivíduo e da comunidade dos povos requer um aberto diálogo e um sincero acordo entre a Igreja de uma parte e o Estado de outra, para estabelecer, fomentar e reforçar relações de recíproca compreensão, de mútua coordenação e colaboração, e para prevenir ou sanar eventuais dissídios, com o objetivo de chegar à realização das grandes esperanças humanas, da paz entre as nações, da tranqüilidade interna e do progresso de cada País. Este diálogo, enquanto quer garantir à Igreja o livre exercício da sua atividade para que esteja em condições de corresponder à missão por Deus confiada, torna certa a Autoridade civil dos objetivos sempre pacíficos e profícuos concordados pela Igreja, e oferece o auxílio precioso das suas energias espirituais e da sua organização, para alcançar o bem comum da sociedade. O sincero colóquio que assim se instaura quando intervém uma relação oficial entre as duas Sociedades, ratificado pelos usos e costumes codificados no direito internacional, oferece possibilidades de estabelecer uma frutuosa relação e de organizar uma obra verdadeiramente salutar para todos.

Ao Representante Pontifício, Paulo VI confia o encargo de interpretar a solicitude do Romano Pontífice para o bem do País no qual exerce a sua missão; interessando-se em particular com zelo pelos problemas da paz, do progresso e da colaboração dos povos em vista do bem espiritual, moral e material de toda a família humana. (Art. IV).

No desempenho das suas funções, seja em relação com a Igreja, seja em relação com o Estado, o Representante Pontifício deve agir assim:

- cooperar com os Bispos, para estimular oportuno relacio-namento da Igreja católica com as demais Igrejas ou comunidades eclesiais e com as religiões não­-cristãs (Cân. 364, 6º).

- defender, em ação conjunta com os Bispos, diante das Autoridades do Estado, o que diz respeito à missão da Igreja e da Sé Apostólica (Cân. 364, 7º).

- promover e sustentar as relações entre a Sé Apostólica e as Autoridades do Estado não deixando de pedir a opinião e conselho dos Bispos de sua jurisdição eclesiástica e de informá-los sobre o andamento dos negócios (Cân. 365, § 2).

Como se pode notar, é sempre e somente a Igreja - a sua vida e a sua missão - que constitui o objetivo primeiro e específico das funções do Representante Pontifício.

Parece lógico por isto concluir que a missão do Representante Pontifício (da Nunciatura), seja nos relacionamentos com a Igreja local seja nos confrontos com o Estado, é eclesiástica. E também quando se trata da promoção de tudo o que diz respeito à paz, ao progresso e à cooperação entre os povos (Cân. 364, 5º), essa é também eclesiástica, já que tudo o que se refere à pessoa humana, à sua dignidade, à sua convivência, ao seu bem estar e progresso, pertence à substância da mensagem de Cristo e da missão da Igreja.

Considerações

As considerações, lógicas e naturais, que derivam de tudo o quanto foi dito até agora são as seguintes:

  • - A função primária e especifica do Representante Pontifício é a Igreja local, seja em si mesma seja nas relações com a Sé Apostólica e com o Estado, compreendendo então todos os aspectos da vida e da missão eclesiástica no País.
  • - A competência do Representante Pontifício é direta, não dependendo do Episcopado local nem de cada um dos Bispos, ainda que, em certos casos, exercitada conjuntamente com o Episcopado e os Bispos (Cân.364,6º e 7º;Cân.365,§2), sem prejuízo para o exercício da potestade legítima dos Bispos (Cân.364,2º). Ao Representante Pontifício cabe por isso o dever e a responsabilidade de conhecer a situação concreta da Igreja, de acompanhá-la e de incrementá-la com a atuação e o conselho (Cân.364,2º), com espírito de disponibilidade e de serviço aos Bispos.
  • - Também como diplomata perante o Estado, ao Representante Pontifício cabe o dever e a responsabilidade de defender em ação conjunta com os Bispos (Cân.264,7º), tudo o que diz respeito à missão da Igreja em todos os seus aspectos. Em questões que poderiam colocar em risco a vida e a missão da Igreja, é seu dever não só estar atento, mas intervir. Assim, por exemplo, a Nunciatura Apostólica não deixou de intervir em alguns problemas - para citar algumas situações concretas - do aborto, do ensino religioso e da filantropia.
  • - A serviço da Igreja e para a Igreja, a missão do Representante Pontifício, para que seja eficaz, deve desenvolver-se num clima de serena e permanente transparência e confiança de relações entre eles, o Episcopado e cada um dos Bispos do País em particular, e vice-versa; um clima livre de prejuízos, de preconceitos, de subjetivismos.

Seja-me consentido terminar esta minha exposição com alguns trechos da alocução que o Papa Paulo VI dirigiu aos Representantes Pontifícios da Ásia, em 28 de novembro de 1970:

Até agora o Núncio não era mais do que o Representante do Papa junto aos governos e à Igreja. A sua ação junto a estes era sobretudo de ordem hierárquica e administrativa e ele permanecia, de alguma maneira, como um corpo estranho à Igreja local. Hoje, ao contrário, o Núncio deve imprimir em sua ação um mais destacado acento pastoral, porque também ele está a serviço do Reino de Deus que progride nos respectivos países.

Continuava, depois: Como Representantes Pontifícios, vós deveis ser para a Igreja local o sinal vivente da nossa comunhão e da nossa solidariedade, partilhando, o quanto possível, das suas mesmas preocupações pastorais. Vindo do coração da cristandade, sois testemunhas da catolicidade e da universalidade da mensagem cristã. Participando do carisma particular de Pedro, representais de maneira privilegiada as exigências da unidade na desejada diversidade das expressões da mesma fé. Pela força da vossa estreita ligação com a Sede do Chefe do Colégio Apostólico, vós constituis, por assim dizer, o vínculo de unidade entre as igrejas particulares do mundo inteiro. Isto não acontece sem um mais fraterno contato com a vida das Igrejas locais, às quais cabe a vós encontrar, em cada caso, as modalidades concretas, no espírito de um autêntico serviço e na consciência de ser antes de tudo o vínculo da caridade (AAS LXIII,1971, p. 31).

Em setembro de 1931, dirigindo-se a uma peregrinação de búlgaros, que foram agradecer ao Papa ter ele enviado um Representante Oficial (na pessoa do então Mons. Angelo Roncalli, que relata o episódio num seu escrito), Pio XI assim se exprimia: Honrem e amem o nosso representante, que ele seja verdadeiramente o olhar, o coração, a mente do Papa (Souvenirs d'un Nonce, Roma, Edizione Storia e Letteratura, 1963 p. 90.)t