O DIREITO CANÔNICO É PAGÃO?

José Nacif Nicolau, Pe.
Canonista que foi Vice-presidente da SBC e
Prof. em BH(ISTA) e JF (ITASA), é também psicólogo.


Participando de uma semana de Direito Canônico na capital mineira ouvi um grande conferencista ao falar sobre o tema "Justiça e Misericórdia" dizer:
" O código de direito canônico é pagão pois não encontrei nele a palavra "misericórdia". E como houve certa reação dos participantes, ele acrescentou: " ao menos no índice ele é pagão".
Sua conferência-reflexão foi brilhante no seu todo, mas resolvi checar validade daquela assertiva.

O último cânon (1752) mostra que tudo nas leis positivas da Igreja deve ser interpretado e aplicado tendo como meta " a salvação das pessoas que na Igreja deve ser a LEI SUPREMA".Ora levar a salvação a todos implica distribuir misericórdia.
Meu professor de normatologia, em Roma, na Pontifícia Universidade Santo Tomás de Aquino, dizia, com muita propriedade, que no Direito Canônico a palavra mais importante em todos os cânones é o "NISI",( a não ser que...) .
Porque? O enunciado da lei deve ser um princípio absoluto, mas sua aplicação na realidade concreta tem que levar em conta a caminhada de cada pessoa ou comunidade, seu estágio na maturação da fé e seu aparato psicológico. Em palavras evangélicas, na aplicação singular da lei deve-se ter presente, sempre, a dimensão da misericórdia. "Só se usa de misericórdia com quem é miserável "(Villadrich) E porque todos o somos, na aplicação da lei deve-se ter presente a misericórdia, ancorada juridicamente no " nisi".

COLCHA DE RETALHOS.
Como as artesãs de hoje e nossas vovós de ontem alinhavavam pedaços coloridos para criarem uma colcha sem preocupação com a seqüência "ordeira" do arco-íris, também o faço aqui, com menor arte, garimpando nosso Código à cata da misericórdia, particularmente quanto às sanções pois aí, de modo mais visível, o evangelho deve ser o primeiro código.

Alinhavos e costuras desordenadas:

1)A capacidade da pessoa física de agir conscientemente está atrelada á sua saúde mental. O cn 99 diz que "a quem falta habitualmente o uso da razão se considera não responsável pelos seus atos e é igualado às crianças"; assim "tal pessoa não está sujeita às leis meramente eclesiásticas" (cn. 11).
Não é ela também capaz de delito mesmo que tenha violado uma lei ou preceito enquanto parecia possuir a sanidade mental (cn.1322); logo, não será punida porque não cometeu delito algum".
O mesmo ocorre a quem tendo intacto o uso da razão mas padecer de uma doença de natureza psíquica. Goza também de imputabilidade (cn 1323/6º) no campo penal quem estiver privado do uso da razão no momento em que praticou o delito. Parece-me ser esta colocação do código uma maneira de expressar a misericórdia de forma jurídica.

2) Além do número de excomunhões latae sententiae terem sido reduzidas (no código de 1917 havia 219 cânones de punições sendo 37 excomunhões latae sententiae; e no novo código de 1983 há 88 cânones punitivos sendo somente 07 (sete) as excomunhões latae sententiae, aquelas ligadas a atos que atingem realidades mais profundas:-profanação da Eucaristia; Revelação do Sigilo de Confissão; Absolvição de cúmplice contra o 6º mandamento da Lei de Deus;Agressão física ao Papa;Apostasia-heresia-cisma;e Aborto seguindo-se o efeito;- Além desta redução numérica, a prática da "misericórdia" está alicerçada nos cânones 1323 e 1324, que merecem um comentário à parte .
Gostaria de dar um nome a estes dois cânones 1323 e 1324: chamá-los de "Retrato Jurídico da Misericórdia."

3) As penas não devem nem podem ser distribuídas a bel prazer da autoridade eclesiástica, mas somente quando forem verdadeira-mente necessárias (quatenus vere necessariae)cn 1317.Portanto, nas faltas cometidas, infrações, delitos deve prevalecer a misericórdia, o perdão. Censuras diversas, excomunhões somente para os casos de delitos mais graves (sola delicta graviora) e com a máxima moderação.(cn 1318).Penalidades, só quando a pessoa dolosa e culpavelmente violar uma lei.Não havendo culpa ou dolo na infração, a misericórdia deve prevalecer.
No evangelho, o uso que Jesus faz da misericórdia não excluía a advertência: "vai e não peques mais"...Você pecou sim, errou, mas eu entendo você, o mistério da pessoa, as circunstancias que interferiram em seu agir, eu lhe perdôo porém não faça mais isto.

4) O cn 1322 aponta para os que não tem habitualmente o uso da razão; mesmo parecendo saudáveis ao cometerem um delito não podem ser passiveis de qualquer punição, e no caso deve-se usar de misericórdia para com eles. Pois mesmo que externamente a ação tenha sido delituosa tais pessoas não serão capazes de cometer um delito. Pedro-Juan Viladrich faz uma análise do que significa não ter habitualmente o uso da razão. Faz-se necessário aplicar uma antropologia séria, sólida e profunda sobre o ato humano. A tradição canônica entende por ato humano aquele que é próprio do homem enquanto ser dotado de livre arbítrio racional. É ato humano aquele ato do qual a pessoa é dona mediante sua razão e vontade. Este senhorio racional e voluntário do sujeito sobre seus próprios atos é o elemento essencial do ato humano."Aquele ato que procede do princípio intrínseco do sujeito, que se origina em si e por si, isto é, pela sua própria vontade livre com conhecimento suficientemente verdadeiro do fim que persegue." A pessoa deve gozar dos pressupostos psíquicos que permitam gerar em si e por si um ato de livre vontade com conhecimento do fim.Tais pressupostos psíquicos abarcam todas as funções do sujeito, tanto orgânicas como não-orgânicas ou espirituais.
O termo "razão" não se limita à inteligência para conhecer nem se reduz a uma função especulativa do entendimento.O transtorno da razão impossibilita dar à vontade um suficiente conhecimento do seu objeto.Ter uso da razão não se trata nem se resume simplesmente naquele grau que se presume ter adquirido a partir da idade cronológica, mas aquele nível capaz de entender e querer o significado do ato que infringe a lei.
Aqui se descortina um enorme leque que vai desde o atraso mental profundo, desde certos transtornos mentais da personalidade e comportamento devidos a importantes lesões cerebrais até a simples intoxicação etílica aguda.
Nestas circunstâncias como não usar daquela misericórdia, fundada no evangelho, sim, e juridicamente codificada?

5) O que podemos extrair dos cânones 1323 e 1324 é a misericórdia codificada, descrita em chave canônica. Cito dois exemplos onde a aplicação da misericórdia prevalece: alguém que praticou um aborto, por medo grave, mesmo tendo se seguido o efeito, não será passível da excomunhão latae sententiae, mas porque se trata de um ato intrinsecamente mau, a misericórdia deve substituir a pena por uma penitência.
Outro exemplo: Alguém embriagado ou drogado pratica um ato passível de pena. Se tal pessoa estiver privada habitualmente do uso da razão não será passível de pena, pois não seria capaz de um ato delituoso (cn 1322).Mas se se tratar de uma ausência não habitual da razão, ela não estará isenta da responsabilidade pelo delito praticado, porém a misericórdia determina que a pena seja substituída por uma penitência.(cn 1323 nº 6)

6 ) Quando se tratar da aplicação de penas, o cn 1341 dita mais uma vez o que estou chamando de "misericórdia canonicamente codificada". Nada mais nada menos do que o que está no evangelho: 1º) usar a correção fraterna; 2º) depois a repreensão; 3º) buscar outros caminhos de solicitude pastoral.
Só depois de esgotados todos estes meios, para se buscar a reparação do escândalo, o restabelecimento da justiça e a emenda da pessoa é que se deve proceder judicialmente; imposição de penas só como último recurso.
É precisamente o que nos diz a Palavra de Deus em Mt. 18,15-18: se teu irmão pecar contra te chame-o à parte para repreendê-lo... se não quiser te ouvir leve junto duas ou três testemunhas; se mesmo assim não quiser escutá-las, exponha o caso à Igreja e se nem isto resolver então sim, considere-o excluído da comunidade (excomungado).

7) Mais um cânon repleto da misericórdia : o 1344.
1º) quando se impõe uma pena "precipitadamente" poderá ocorrer que aquele que praticou o delito, ao contrário de se emendar ou de se reparar o escândalo acontecido, não se corrigirá nem o escândalo será reparado e advir até maiores males ; o juiz poderá então adiar a aplicação da pena.
2º) se a pessoa que praticou o delito já reparou o escândalo provocado, já se corrigiu ou se já foi punida pela autoridade civil nos casos em que o delito também feriu tal legislação ou mesmo se preveja que será punida por ela, a "misericórdia" estabelece que o juiz não precisará impor pena alguma, ou uma pena mais leve do que a legislação canônica prescreva, ou só uma penitência.
3º) se uma pessoa leva uma vida honesta, reta, louvável, mas comete pela primeira vez um delito, a misericórdia dita ao juiz que ele pode suspender a obrigação de cumprir a pena relativa àquele delito.
4º) Mais ainda, se quem praticou o delito não estiver senhor de si, é notório e evidente que o ato praticado não entra na categoria de ato humano, que tem que ser livre, ponderado e consciente. Não estando senhor de si, de seus atos, na linguagem da escolástica tal pessoa somente praticou um ato de homem mas não um ato humano.Conseqüentemente sem entrar na categoria de delito.

8) O cânon 1345 diz que o juiz pode se abster de impor qualquer tipo de punição quando outro modo for mais garantido para se atingir o objetivo da "conversão" de quem praticou o delito, traçando aí mais uma linha da misericórdia. Para esta aplicação, o cânon apresenta as circunstâncias numa listagem não restritiva mas sempre aberta à realidade do mistério da pessoa humana em seu agir:
a) quando a pessoa tiver somente o uso imperfeito da razão;
b) quando ela tiver cometido um delito:
-- por medo, que pode ser absoluto ou relativo (é de se notar que a qualificação do medo cai na categoria do subjetivo);
-- por "necessidade";
-- levada pelo ímpeto da paixão;
-- em estado de embriagues;
-- estando com alguma perturbação mental ( amplo horizonte do ser humano)

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Concluo deixando a colcha de retalhos inacabada: tanto nas penas latae sententiae quanto nas ferendae sententiae, o que deve nortear nosso agir de canonistas é a misericórdia, porque a pessoa humana carrega o mistério ontológico de seu ser, pleno de respeito, até quando pratica um delito, mesmo que seja um ato intrinsecamente mau.
Só quem for contumaz, plenamente cônscio de seus atos, deverá ser punido.

Poderia continuar indicando outros lugares no código em que a misericórdia deve ser praticada respaldada no canônico.Mas estas linhas já são relativamente suficientes.
Quero enfatizar somente que é de muita misericórdia que nosso direito canônico está cheio!
E se ele não é aplicado dentro desta perspectiva da misericórdia pode-se então dizer que é o Juiz que será pagão e não o Código de Direito Canônico.