A Transmissão da Revelação

Relação entre Tradição, Sagrada Escritura e Magistério da Igreja

Dc. Rhawy Ramos, Prof. de Teologia Fundamental e Sistemática da Escola MaterEcclesiae, Prof. de Direito Canônico do Seminário Nossa Senhora Rosa Mística de Nova Friburgo. Prof. de Direito Canônico e Patrística da Escola Teológica Redemptoris Mater de Macaé

Em qualquer catecismo aprendemos que Deus nos fala pela Escritura e pela Tradição.; estas duas fontes, conforme os catecismos clássicos são dignas de igual veneração, pois tem a mesma origem divina. O Concílio Vaticano II, e por conseguinte o Catecismo da Igreja Católica (nn. 80-82), imposta o tema de uma forma um pouco diversa, de agora em diante não se falará mais de duas fontes, pois ambas promanam da mesma fonte divina, e formam de certo modo um só todo, tendendo para o mesmo fim (Cf. Const. Dogm. Dei Verbum, 9), falar-se-á sim de modalidades distintas de transmissão.

O texto da Dei Verbum também faz uma inversão curiosa: ordem tradicional "Escritura e Tradição", se transforma em "Tradição e Escritura"; não quer o Concílio dar maior importância à Tradição em detrimento da Sagrada Escritura - como se disse acima ambas merecem igual reverência (cf. DV 9) -, ambas são canais por onde passa a Palavra de Deus, mas pelo simples fato de que a Tradição antecede a Escritura, a fato, a acompanha, define e esclarece.

De fato, a Revelação, iniciada com a Vocação de Abraão (séc. XIX a.C.) já tem esta característica, uma vez que foi transmitida de geração em geração - "...narrareis estas palavras aos teus filhos..." (Dt 6,6) - e só depois de muito tempo registradas por escrito, sob inspiração divina. Pensemos, por exemplo, na fonte sacerdotal do Pentateuco, datada do séc. V a.C., e que, com intenção teológica, fala de fatos bem anteriores.

A Tradição, tanto em Israel como na Igreja, acompanha a Escritura, na sua formação e na sua leitura. É também ela que diz o que faz parte da Escritura, uma vez que nem o Antigo nem o Novo Testamento nos dão um catálogo dos livros bíblicos; portanto, mesmo quem diz não aceitar a Tradição (protestantes), forçosamente a aceita neste ponto, bem como em dogmas fundamentais como a Santíssima Trindade, que não encontra expressão clara na Escritura.

O fato fundamental do qual procede a fé cristã é a vontade de Deus de nos revelar o mistério de sua vida e seu plano de Salvação, que é uma progressiva configuração à própria vida divina. Para tanto, fala pelos profetas de muitos modos e por muitas maneiras, culminando com o envio do próprio Filho, Palavra Eterna do Pai (cf. Hb 1,1-2; DV 3-4); por fim, Pai e Filho, ou o Pai pelo Filho, nos enviam o Espírito Santo, auxílio interior que abre os olhos da alma (cf. DV 4-5).

Quis Deus que nesta obra divina tivessem parte os próprios beneficiários; é assim que as Sagradas Escrituras não descem dos céus, como em alguns mitos pagãos, mas são formadas em Israel e na Igreja que lhe sucede e aí devem ser lidas com o mesmo espírito que foram compostas, pois um foi o Espírito que as inspirou e é Ele que conduz a Igreja até a consumação.

Assim, Tradição e Escritura constituem um depósito sagrado (cf. 2Tm 1,12-14) confiado à Igreja (cf. DV 10) e dentro desta Igreja ao Colégio Episcopal, sucessores dos Apóstolos e que têm por função serem "Mestres da Verdade", com a autoridade de Cristo e assistidos que são pelo mesmo Espírito que os elegeu e em consonância com o Supremo Pastor, que entre eles é o Bispo de Roma. A este corpo Eclesial, que constitui o Magistério, compete interpretar autenticamente a Palavra de Deus, que nos vem pela Tradição e Escritura; ele, porém é servo desta Palavra "não ensinando senão o que foi transmitido, enquanto por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo, a ouve piamente, haurindo deste único depósito da fé todas as coisas que propõe à fé como divinamente reveladas" (DV 10).

Tradição, Escritura e Magistério, cada um a seu modo, concorrem, de forma harmônica e eficaz, para a realização da plenitude da vocação cristã, falando da mesma Verdade. Como expressão dessa Verdade são infalíveis enquanto tratam de seu objeto próprio, que são a fé e os costumes; ou seja, enquanto nos ensinam o que devemos crer e como devemos agir para a plena realização dos desígnios de Deus a nosso respeito.

Deve-se ainda enfatizar que o Magistério nada cria na Revelação, mas cabe-lhe ser o depositário e intérprete da mesma, esclarecendo aquilo que está de alguma forma ainda que obscura e implícita, no Depósito da Fé (cf. Pio XII, Humani Generis, DS 3886) ao mesmo tempo que aplica a Palavra sempre atual aos nossos dias. O Magistério não é uma terceira fonte ao lado da Tradição e da Escritura, mas é, em última análise, a Tradição oral que continua a falar pelos séculos através de seus autênticos intérpretes. O Magistério só se pronuncia após ter auscultado a Palavra de Deus oral e escrita, depositadas na Igreja, procurando, com a assistência do Espírito Santo, deduzir desse depósito as conclusões nele contidas, para as desdobrar em nossa vida, em nossa história.