Testemunhas da sacralidade do amor conjugal

 

No dia 19 de outubro p.p., na Basílica dedicada a Santa Teresa do Menino Jesus e Sagrada Face, na cidade de Lisieux, França, o Cardeal José Saraiva Martins, Prefeito Emérito da Congregação para as Causas dos Santos, beatificou o casal Zélia Maria Guérin (1831-1877) e Luís Martin (1823-1894) que vem juntar-se ao casal Maria e Luís Beltrame Quattrocchi,  beatificados pelo Papa João Paulo II em 21 de outubro de 2001, durante a jornada mundial das missões. Omilagre foi atribuído aos dois exatamente na particularidade de serem cônjuges.

Tiveram origem na burguesia e nesse estrato foram eleitos à santidade. Os pais eram militares e deram aos filhos uma educação baseada na disciplina, severidade e rigorismo, tudo isso marcado por um certo jansenismo, ainda a rastejar pela França naqueles idos. No campo religioso, foram educados pelas irmãs da adoração perpétua e pelos irmãos das escolas cristãs. No momento de fazer a opção profissional, ela ajudava a mãe no estabelecimento que possuíam e acabou por enveredar pelas artes da renda, abrindo uma loja que chegou a sustentar toda a família. Ele escolheu ser relojoeiro, não obstante o exemplo do pai, oficial do exército de Napoleão.

Desde a mais tenra idade revelam o desejo de adentrar a vida religiosa. Ela buscou ingressar nas Filhas de Caridade de São Vicente de Paulo, mas logo percebeu que essa não era a sua estrada para a seqüela Christi; ele bateu às portas dos Cônegos Regulares de Santo Agostinho, não sendo aceito porque não conhecia a língua latina.

Ela, fixando estada em Aleçon, com o aperfeiçoamento da sua arte estava a trabalhar para a alta sociedade parisiense, auferindo um seguro sustento. Durante três anos viveu ele em Paris, hospedando-se com parentes e aproveitando para aperfeiçoar sua profissão de relojoeiro, ocasião em que se aproxima de uma associação secreta, da qual logo se afasta retirando-se para Aleçon, já que o clima da capital era demasiadamente pesado e assaz revolucionario. Exerceu sua profissão até os trinta e dois anos, conduzindo de modo ascético a sua vida.

O encontro entre os dois se deu há cento e cinqüenta anos, quando estavam a percorrer a ponte de São Leonardo. Ao trocarem olhares, perceberam que Deus os havia escolhido para a missão de viverem juntos a grande aventura do amor conjugal,   chamamento singular à santidade: a de serem colaboradores de Deus na obra da criação. Com poucos meses de noivado convolam  núpcias e, a partir de então, passam a conduzir a vida fundada sobre a "Rocha Firme", buscando viver com fidelidade o seguimento do Evangelho que passou a ser aprofundado pela participação quotidiana no Santo Sacrifício da Missa, pela oração pessoal e comunitária, pela confissão sacramental freqüente, com participação ativa na vida paroquial.

Dessa sólida união nasceram nove filhos, dos quais quatro morreram na mais tenra idade. Entre as cinco filhas que restaram está Santa Teresinha, virgem e doutora da Igreja, há exatos dez anos. As recordações dessa monja sobre os seus pais, contidas em suas obras, são preciosa fonte para que possamos compreender a santidade de vida que eles trilharam como testemunhas da sacralidade do amor conjugal. A filha afirmava, nos momentos em que recordava os sentimentos de amor e de gratidão que sentia por eles: - "O bom Deus me deu um pai e uma mãe mais dignos do céu do que da terra".

Estando a viver os seus 45 anos,, a Sra. Zélia recebeu a notícia, sempre dolorosa, de que trazia um tumor maligno no seio, tendo enfrentado sua enfermidade com firmíssima esperança cristã porque vivera a fé e se alimentara no exercício da caridade.  Partiu na esperança para o encontro com o esposo de nossas almas em 28 de agosto de 1877. Aos 54 anos o Sr. Luís acabou tendo que se ocupar sozinho da família. A primogênita contava então dezessete anos de idade e a caçula, Teresa, apenas quatro. Nessas circunstâncias mudou-se para Lisieux, onde morava o irmão de Zélia. As meninas continuaram a ser educadas pelo pai e pela tia Celina.

No decorrer de apenas cinco anos, de 1882-1887, o pai conduziu três de suas filhas para a Ordem da Bem Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo Descalço, tendo sido, sem dúvida, grande sacrifício deixar por lá sua pequenina Teresa de apenas quinze anos. Foi então acometido de enfermidade que o tornou inválido, sendo conduzido por essa à perda das faculdades mentais. Internado no sanatório de Caen,  entregou-se ao Senhor em julho de 1894.

Gostaríamos de concluir este ensaio com trechos da homilia pronunciada por S. Emcia. no dia da beatificação: "o matrimônio é uma das mais nobres e elevadas vocações para as quais os homens e as mulheres são chamados; desse modo, Zélia e Luís compreenderam que podiam santificar-se não obstante o matrimônio, mas através do matrimônio e que a sua união deveria ser considerada como o início de uma elevação conjunta... A Igreja admira não só a santidade da sua vida, mas reconhece nesse casal a santidade eminente da instituição do amor conjugal, assim como o concebeu o próprio Criador".

O segredo para que atingissem a santidade reside no fato de que buscaram, com fidelidade "caminhar juntos com Deus à procura da vontade do Senhor" e, para que alcançassem essa certeza de um trilhar nos caminhos da divina vontade, dirigiram-se à Igreja, ‘perita em humanidade', procurando conformar todos os aspectos da própria vida aos seus ensinamentos". A aceitação da vontade de Deus era para eles uma regra de vida. "Eles serviram primeiro a Deus no pobre, não por um simples impulso de generosidade nem por justiça social, mas simplesmente porque o pobre é Jesus. Servir o pobre é servir Jesus, é dar a Deus o que é de Deus...".

Ao repropor algumas cartas escritas pelo casal, o Emmo. Purpurado realçou a estima, o respeito e a harmonia que caracterizou o seu amor nos dezenove anos de matrimônio, lembrando que "viveram as promessas do matrimônio na fidelidade mais absoluta, na consciência da indissolubilidade do vínculo, na busca da fecundidade do seu amor, na alegria e no sofrimento, na saúde e na doença". Eles se tornaram um dom para os seus filhos - inclusivamente, são também "dom para todos os que perderam um cônjuge. A viuvez é sempre uma condição difícil de aceitar. Luís viveu a perda de sua esposa com fé e generosidade, preferindo aos seus desejos pessoais o bem das crianças". Eles são também um dom "para os que enfrentam a doença e a morte. Zélia faleceu vitimada por um câncer; Luís, de arteriosclerose cerebral. Num mundo como o nosso, que procura esconder a morte, eles nos ensinaram a encará-la e a abandonarmo-nos a Deus".

Em março de 1994 foram aprovadas suas virtudes heróicas, com o conseguinte título canônico de "Veneráveis". No dia 17 de janeiro, a consulta médica da Congregação para a causa dos Santos aprovou um milagre atribuído à sua intercessão. O milagre examinado leva em consideração a cura de Pietro Schilirò que nasceu no dia 25 de março de 2002, com uma má-formação dos pulmões. O garoto, natural de Monza (Itália), não tinha, segundo os médicos, chance de sobreviver. Os pais o batizaram no dia 3 de junho e estavam convencidos de que a morte do menino era iminente. Nessa situação extrema, começaram uma novena ao casal e, em poucas semanas, a saúde do menino melhorou inesperadamente.

Os corpos do casal foram exumados de sua cripta, na basílica de Lisieux, no dia 26 de maio de 2008, para serem trasladados para a basílica de Verona (Itália), onde um relicário foi preparado para abrigar os restos mortais dos bem-aventurados. A cerimônia, privada, contou com a presença do pequeno Pietro.

A celebração da beatificação ocorreu também na jornada mundial das missões, tendo havido uma associação do evento ao mistério da contínua missionariedade da Igreja, querendo desse modo unir os mestres Zélia e Luís à discípula Teresa, sua filha, patrona celeste das missões. Vale a pena anotar que pela primeira vez, com a beatificação desses esposos, a Igreja estabeleceu que a comemoração seja feita no dia do seu matrimônio, 12 de julho, e não no de seu falecimento, como de costume. Percebo com essa determinação que a Igreja deseja assinalar a importância da união matrimonial como caminho de santificação e fonte de elevação de toda a sociedade. Neste ano foi celebrado o sesquicentenário do enlace matrimonial.

A beatificação dos esposos Martin manifesta a importância que tem o ambiente familiar e a sólida educação para a formação dos filhos, educação abrangente, selada pela vida da fé, ensinada sem dúvida com a palavra, mas sobretudo com o exemplo cotidiano. Se Santa Teresinha é, como disse o Santo Padre Pio XI, «a maior santa dos tempos modernos», isso se explica em boa medida pelo pai e pela mãe extraordinários que teve.

Que Zélia e Luís sejam constantes intercessores por todas as famílias do mundo!

 

D. Hugo da S. Cavalcante, OSB

CEENSs 16 e 37 do Setor A da Região CO1