Homilia do Cardeal-Patriarca Dom José, 26 de janeiro de 2006

Mais uma vez, por iniciativa de um grupo de Magistrados e outros agentes judiciais, nos reunimos aqui, nesta Sé Catedral, no dia da solene abertura do Ano judicial, para louvarmos o Senhor e invocarmos a sua luz e proteção. Porque sois crente, viestes para ouvir a Palavra de Deus, no desejo de encontrar nela luz inspiradora para a importante função de administrar a Justiça.

Como ouvimos na primeira leitura, essa foi a preocupação primeira de Moisés no governo do Povo de Israel. Ele quis ter gente idônea, moralmente credível, que estivesse perto das pessoas, as escutasse nas suas dissensões e problemas, a todos por igual e apurasse a verdade, porque a Justiça tem de assentar na verdade, devendo ser ela, aliás, uma expressão da verdade. Já aí Moisés propôs como última instância para os casos mais difíceis. Qualquer última instância é um derradeiro esforço para apurar a verdade. Moisés lembrou-lhes que, definitivamente, só Deus conhece toda a verdade e pode julgar com justiça definitiva e que os julgamentos humanos devem aproximar-se dessa verdade e dessa justiça.

Jesus, no Evangelho, radicaliza esta perspectiva transcendente da justiça, afirmando ao povo que toda a Lei se resume no amor a Deus e ao próximo. Escutar, para julgar, é uma forma de servir e amar, porque só amando nos aproximamos da verdade. São Paulo reafirmará em fórmula lapidar, esta doutrina: quem ama, cumpre toda a lei.

Estou consciente de que vivemos hoje num quadro civilizacional em que espontaneamente se pensa que a fé e a religião nada têm a ver com a solução dos problemas que, a par da dimensão celebrativa, a fé cristã tem uma inevitável incidência ética, portadora de um quadro de valores que se tornam cultura e de que o crente não pode abdicar no exercício das suas funções específicas ao serviço da sociedade. Porque se torna cultura, esta incidência ética do Evangelho pode ter uma repercussão mais vasta do que a própria prática religiosa.

No que à administração da justiça diz respeito, o livro do Êxodo aponta-lhe as principais concretizações.

Escutar as pessoas, como primeira manifestação do respeito que nos merecem. Escutá-las porque são pessoas, independentemente da posição social que ocupam, enquadrar a verdade dos fatos em análise, na verdade mais vasta da própria pessoa, nunca a confundindo com o seu presumível crime, pois toda a pessoa é sempre mais que o seu pecado. Esta atitude só será cabalmente garantida, se o respeito pela pessoa for uma expressão de amor fraterno.

Procurar, acima de tudo, a verdade, pois só esta garantirá a justiça. E só é capaz de procurar a verdade no ato de julgar, quem a procura no conjunto da vida. A verdade procura-se com humildade, com zelo, com inteligência, na consciência de que a verdade dos fatos não esgota todo o horizonte da verdade.

Desejar que a aplicação da justiça restabeleça a harmonia entre as pessoas. Só assim a justiça será um fator de paz e de humanização da comunidade. Procura-se a justiça no contexto de um ideal de sociedade a construir.

A busca da justiça situa-se, por isso mesmo, num quadro cultural de valores inspiradores da sociedade como um todo. Nenhum sistema judicial, por mais perfeito que seja, garantirá cabalmente a justiça na sociedade, se esta não assentar, do ponto de vista cultural, na busca da verdade e da justiça. Nem todas as injustiças chegam aos tribunais. Precisamos de aperfeiçoar, continuamente, o sistema de administração da justiça, mas precisamos, sobretudo, de desenvolver uma cultura que valorize a verdade, a equidade, a generosidade e o respeito pela pessoa humana, em todas as circunstâncias.

Quando a mentira ganha foros de normalidade, quando a desonestidade e o egoísmo se tornam processos habituais, quando a pessoa humano é magoada na sua dignidade, na família, no trabalho, na escola ou na política, a sociedade tem direito de recorrer à justiça, mas ela já não sabe o que é a justiça, que se aproxima sempre do amor e da verdade.

Num quadro cultural que busca a harmonia da sociedade, têm uma importância decisiva as leis, ponto de referência objetivo da aplicação da justiça. São grandes os Povos que têm leis sábias e justas, que emanam, sem o agredir, do quadro cultural de valores onde se inspira de sociedade a construir.

A atividade legislativa é a mais nobre e responsável função de uma sociedade. Os legisladores deveriam procurar que a legalidade coincidisse sempre com a moralidade, concebida esta, não necessariamente como moral religiosa, mas como moralidade inspirada no quadro cultural, em cujo caldear também entrou a perspectiva religiosa, que apenas sublinha e plenifica a moral natural. É uma situação culturalmente preocupante, tendência das sociedades contemporâneas, quando a legalidade não respeita a moralidade. A exigência e a inspiração ética do cristianismo não se podem reduzir à expressão religiosa e cúltica. Tudo isto sublinha a importância dos cristãos na cidade, pois a evangelização passa, também por esta densidade humanizada da cultura.

Procurar a justiça é dignificar o homem e lutar por uma sociedade de rosto humano. Rezo hoje por todos aqueles e aquelas que, no contexto do nosso quadro legal, procuram abnegadamente a justiça, tornando-se do nosso quadro legal, procuram, abnegadamente a justiça, tornando-se peritos em humanidade, porque o mal e o bem cruzam-se no coração do homem e só no realismo dessa verdade, aprendemos a conhecê-lo e a amá-lo.