Com o decesso de Saramago, a língua portuguesa, ou melhor, o desvelo por ela enfrenta uma perda imane. O romancista extinto dias atrás sabia escrever bem. Ateu convicto, Saramago respeitava a gramática religiosamente. Inovou apenas em itens acessórios, como, por exemplo, o modo de introduzir as falas diretas das personagens, sem o tradicional travessão. O leitor, entretanto, logo se acostumava com a novidade. A redação desse Prêmio Nobel era intemerata, estreme, com vernáculo realmente castigado, neste aspecto, comparável a um pe. Antônio Vieira ou a um pe. Manoel Bernardes. Quando jovem, Saramago decerto leu as obras desses dois compatriotas.

Muitos dos livros de Saramago foram publicados no Brasil. O autor, no entanto, proibia qualquer adaptação ortográfica. Refiro-me às pouquíssimas diferenças de escrita que ocorrem no modo de escrever o português no Brasil e em Portugal. Na verdade, Saramago temia a ação solerte de certos revisores insipientes que, crendo corrigir o texto, violam-no, adulteram-no, enfim, emporcalham o trabalho do artista das letras.
Embora ateu confesso, Saramago, de modo irreverente, dialogava com a religião cristã. Quem pode se esquecer do sentimento de culpa que ele pusera na mente de são José, no "Evangelho Segundo Jesus Cristo"? Ou, ainda, no mesmo romance, da recusa de Marta à ressurreição de Lázaro, irmão dela: "Senhor, ninguém merece morrer duas vezes!"? Genial! As diatribes literárias do finado lusitano não eram ofensas, mas críticas construtivas, a suscitarem a reflexão do público legente.
Infelizmente, vivemos a era da mediocridade. Isto é cíclico na história. Oxalá, dentro em breve apareçam outros luminares da língua portuguesa, como Saramago. Por enquanto, se quisermos um bom livro, recorramos aos clássicos. Talvez uma vida inteira bem anosa não seja suficiente para lê-los todos e nos inebriarmos com sua pulcritude.
A Igreja em Portugal lamentou a morte desse portentoso escritor. Os que recriminam Saramago pelo ateísmo não devem se esquecer que a pior forma de descrença em Deus é o ateísmo prático, concretizado dia a dia por tantos cristãos que dicotomizam fé e vida.
Rezemos para que Deus, na sua infinita misericórdia, receba no céu esse irmão luso, inscrevendo-o no livro da vida eterna, da bem-aventurança inefável, da qual a arte apenas exprime alguns lampejos.

Edson Luiz Sampel

Membro da Sociedade Brasileira de Canonistas (SBC)