A salvação das almas: suprema lei na Igreja

O legislador do código canônico escreveu o princípio da salvação das almas no último cânon: 1752. Fê-lo adrede, porque um valor tão importante fecha com chave de outro o diploma legal. Mas, exatamente, no que consiste essa exortação jurídica para salvar as almas?
Em primeiro lugar, o aludido princípio se dirige aos juízes, aqui compreendidos os que julgam por poder originário, como os bispos, provinciais e outras autoridades, bem como os que exercem a judicatura por delegação, como os vigários judiciais e demais juízes canônicos que atuam nos tribunais eclesiásticos.
Para que possamos compreender a extensão da salus animarum (salvação das almas), é imperioso que distingamos o objetivo da sociedade política do objetivo da sociedade eclesial. O fim do estado é o bem comum. A Igreja tem um escopo que transcende o simples bem comum e visa a atingir outrossim a bem-aventurança escatológica, consistente na visão beatífica que cada batizado, após a morte, fruirá de Deus face a face. Para o estado hodierno, infelizmente, não há sequer vida póstuma. As leis civis regem o hic et nunc, o aqui e agora; nada prescrevem com vistas no além-túmulo.
Sabemos, contudo, que o reino de Deus começa já neste mundo. Demais, vemos ao derredor, quotidianamente, facetas do céu, do purgatório e do inferno. Por exemplo, os crimes atrozes cometidos dia a dia são nuanças do inferno. Já as patologias graves que nos acometem ou os sofrimentos morais podem ser lampejos do purgatório. Por outro lado, a comunidade reunida em torno da mesa eucarística, a prática do amor aos irmãos pobres e a frequência dos sacramentos são típicos exemplos de realidades que muito se aproximam do céu, da jucundidade inefável que experimentaremos juntos de Cristo, de Maria santíssima e da Igreja triunfante. É com este pano de fundo, no lusco-fusco das ambiguidades humanas, que o juiz eclesiástico profere suas decisões. O horizonte do julgador civil é assaz diminuto; tão somente as vicissitudes práticas lhe interessam. O juiz canônico, por seu turno, ao lume do princípio da salvação das almas, precisa verificar se o veredicto processual realmente implicará o bem da pessoa julgada. Na hipótese contrária, a sentença não será plenamente justa.
Por fim, esclareçamos que o princípio ora examinado não significa a prevalência do espiritual sobre o somático. A sã teologia proscreve a dicotomia entre corpo e alma. Com efeito, ao empregar a expressão salus animarum, o código tem em mira o ser humano integral, inserido na história.

Edson Luiz Sampel
Membro da Sociedade Brasileira de Canonistas (SBC)