FUNDAMENTO

O cân. 22 do CIC assinala, com uma meridiana clareza: "as leis civis, às quais o direito da Igreja remete, sejam observadas no direito canônico com os mesmos efeitos, desde que não sejam contrárias ao direito divino, e não seja determinado o contrário pelo direito canônico". Essa normativa é bem conhecida com a expressão "canonização das leis civis", ou seja, o Direito Canônico pede que estejamos atentos ao cumprimento das determinações contidas nos ordenamentos jurídicos de uma Nação ou de um Estado e isso relativamente a alguns tipos de matérias. Esse cânon, dessa forma, reconhece formalmente o direito estatal como fonte subsidiária do Direito Canônico, para os casos em que esse venha expressamente assinalado pelo supremo legislador no texto codicial.
É óbvio, entretanto que, canonizando algumas normas civis a Igreja, sociedade originária e plenamente autônoma, não renuncia ao seu direito de emanar suas próprias leis diversas daquelas civis e também contrárias a essas. No Código de Cânones das Igrejas Orientais = CCEO encontramos essa mesma normativa no cân. 1504.
O princípio fundamental aqui expresso não pode prescindir do que vem expresso pelo § 1 do cân. 1254: "a Igreja católica, por direito nativo, independentemente do poder civil, pode adquirir, possuir, administrar e alienar bens temporais, para a consecução de seus fins próprios" Esse, portanto, é um direito originário e independente do poder civil, mas apesar dessa explícita determinação não podemos deixar de se ater as leis civis nessas matérias que se destinam, mais propriamente, aos bens temporais. Pois através desses bens, a Igreja poderá desempenhar os seus principais fins próprios, que são: organizar o culto divino, cuidar do conveniente sustento do clero e dos demais ministros, praticar obras de sagrado apostolado e de caridade, principalmente em favor dos pobres (cf. § 2).

RAZÃO
Em certas matérias comuns a Igreja e a o Estado relativas à esfera temporal não devem surgir contrastes entre os dois ordenamentos, mas é necessário que se evidencie uma frutuosa cooperação. Por outro lado, nesse campo específico, a legislação eclesiástica valendo-se daquela civil poderá adaptar-se melhor as exigências dos vários povos e as diversas circunstâncias de tempo e de lugar.
ALGUMAS NORMATIVAS CIVIS CANONIZADAS
Deteremos-nos aqui, entretanto, somente no campo econômico, administrativo e do trabalho, deixando, de lado, portanto, outras situações nas quais se faz explícita referência às leis civis. Limitamos-nos aqui CIC, embora saibamos que o CCEO também possui suas normativas nessa linha.
Prescrição = o cân. 197, tratando do instituto jurídico da prescrição assim se refere: "a prescrição enquanto modo de adquirir ou perder um direito subjetivo ou modo de se livrar de obrigações, a Igreja a recebe como se encontra na legislação civil da respectiva nação, salvas as exceções estabelecidas nos cânones deste Código". O cân. 198, exige que ela seja fundada pela boa fé e o cân. 198 indica o que a Igreja não adquire como sujeito a prescrição.
Relativamente aos bens temporais a prescrição, enquanto modo de adquirir e de se eximir está apresentada nos cann. 1268-1270; o Código Civil Brasileiro trata do instituto jurídico da prescrição nos Artigos 189-206.
Trabalho e vida social = os cann. 231, § 2; 1286, 1º, trata dos leigos que foram assumidos, de modo permanente ou temporário para um serviço particular à Igreja (sacristão, secretári@, etc) e não ministérios (leitor, acólito, catequista, MESC, etc) asseverando que aqueles possuem o direito de receber uma honesta remuneração, previdência, seguro social e assistência a saúde. Sendo observado nos contratos de trabalho, as leis civis relativas a esse e à vida social; o Código Civil Brasileiro trata do Trabalho nos Artigos 593-609, mas apenas das prestações de serviços que não estão contidas nas leis trabalhistas presente no Brasil na Consolidação das Leis do Trabalho = CLT.
Religiosos = o cân. 668, §§ 1 e 4 trata do testamento e da renúncia aos próprios bens que deve ser feito por aqueles que são obrigados pelas Constituições de modo a ser reconhecido também no civil; O Código Civil Brasileiro trata do instituto jurídico do testamento nos Artigos 1857-1911; 1966-1990.
Administração dos bens eclesiásticos = o cân. 1284 contém três parágrafos, havendo o segundo dez números. A norma contida no § 1º deve ser percebida como uma premissa, uma exortação para que todos os administradores de bens eclesiásticos tomem consciência da obrigação moral e jurídica de assumir seu encargo "com a diligência de um bom pai de família", ou seja, com empenho, cuidado, senso de responsabilidade e de prudência, retidão e fidelidade que devem distinguir o administrador eclesiástico que deve se eximir de toda forma de especulação. Em verdade, tratando-se da administração dos bens e do Administrador, o CIC faz referência a isso nos cann. 1273-1289; o Código Civil Brasileiro trata do Administrador e da administração, de modo específico nos Artigos 1010-1-21, mas também em outros artigos.
Contratos = o cân. 1290 trata dos contratos e pagamentos, referindo-se diretamente a observância da legislação civil geral ou especial; o Código Civil Brasileiro trata do instituo jurídico do contrato e da alienação nos Artigos 421-652.
Alienação = o cân. 1291 entende a alienação não somente com a cessação da propriedade de uma coisa ou de um direito (como fazem os Códigos Civis), mediante venda ou doação. O CIC percebe tal instituto jurídico, em sentido mais amplo, ou seja, é qualquer ato, operação ou negócio que possa modificar ou prejudicar a situação patrimonial de uma pessoa (cf. cân. 1295). Compreende, portanto, a permuta, a constituição de uma servidão ou de uma cessão, de uma hipoteca, de um penhor, a renúncia a um direito, a uma herança ou a uma doação, etc. Para se fazer uma alienação é necessária a devida licença; a partir do cân. 1292 vem demonstrada a autoridade competente para conceder a licença; como se aliena os bens divisíveis; os deveres das pessoas a quem cabe dar o consentimento ou parecer prescrito; algumas medidas de prudência; o preço da alienação e o emprego do dinheiro que se obteve com a alienação e como se deve proceder no caso em que uma alienação seja canonicamente ilegítima e civilmente válida (cf. cann. 1292-1296). Na legislação complementar ao CIC propostas pela CNBB e que receberam a recognitio da Sé Apostólica ao tratar do que dispõe os cann. 1297 e 1298 diz "a autoridade competente para a locação dos bens eclesiásticos é o Bispo diocesano, ouvido o conselho econômico".
Disposições "mortis causa" = o cân. 1299, § 2 considera somente as disposições feitas em benefício da Igreja, ou seja, para os seus fins, com ato mortis causa, pedindo que "observem-se as formalidades do direito civil, sendo possível; se tiverem sido omitidas, devem os herdeiros ser advertidos sobre a obrigação que lhes incumbe de cumprir a vontade do testador". Sobre essa matéria o Código Civil Brasileiro preceitua nos Artigos 1784-1797.
Ação possessória = o can. 1500 se refere a esse instituto jurídico que é, na realidade é a ação que tem o intuito de obter, reter ou reaver a posse de uma coisa; para obter a posse deve estar fundada em um título jurídico, enquanto para reter ou reaver, basta que se comprove o fato da posse anterior. O Código Civil Brasileiro trata dessa ação no Artigo 1435 inciso II
Transação, compromisso arbitral = os cann. 1713-1714 que tratam dos modos pelos quais de evitar os juízos, faz referencia a uma lei a ser emanada pela Conferência Episcopal nessa matéria, que não a temos ou fazer uso da lei civil vigente, que está contida nos Artigos 840-850; 851-853 do Código Civil Brasileiro.
Fica então claro, que em matéria econômica, administrativa e trabalhista, temos que atentar não somente para o cumprimento dos ordenamentos canônicos, mas também daqueles de cunho civil aos quais o Direito Canônico se refere.

D. Hugo Cavalcante, OSB
Presidente da Sociedade Brasileira de Canonistas